‘Estivemos os quatro doentes’

Os dois médicos consultados são da opinião que foi a covid-19 que nos provocou febre, tosse constante, perda do paladar, cansaço e dificuldade em respirar. Nunca saberemos porque não realizámos os testes. Não éramos prioritários. A visita do coronavirus ou do seu irmão-gémeo foi longa e dolorosa, sobretudo para os asmáticos cá de casa.

por Filipa Moreira da Cruz
 

Macron decretou o prolongamento da quarentena até 11 de maio. Anunciou que serão realizados testes à população mais exposta, assim como às pessoas que apresentem sintomas (até que enfim!). Haverá novas ajudas financeiras para as famílias mais vulneráveis e o regresso à ‘normalidade’ será progressivo e organizado por fases; não sairemos todos de casa ao mesmo tempo. Nas grandes cidades, como Paris, Marselha, Lyon ou Bordéus, alguns habitantes começam a desobedecer às regras da quarentena. O tempo é demasiado longo e o confinamento é cada vez mais difícil. Uma vontade inexplicável de fazer jogging, as constantes saídas com o cão, a imprescindível baguette, vale tudo para abandonar o lar.

Eu e a minha família contrariamos as últimas estatísticas. Após um período de incerteza e de receio passamos a aceitar esta situação com naturalidade e ficamos em casa. Para o nosso bem e o de todos os outros. O meu marido vai às compras uma vez por semana, muito contrariado.

Os meus filhos estão de férias da Páscoa entre 11 e 27 de abril. O ano letivo em França é mais longo que em Portugal, tendo várias interrupções, as quais estão organizadas por três zonas. Nós pertencemos à zona B. Este período de repouso vem mesmo a calhar! Ainda assim, as professoras enviaram fichas, a fim de evitar que as crianças se aborreçam. A Mathilde recebeu 18 e o Stan teve direito ao jackpot: 45! Obviamente, eu fiz uma pré-seleção e imprimi apenas 5 para cada um. Os meus filhos já estudaram em Portugal, Espanha e França e a obsessão das professoras pelas ditas fichinhas tem sido uma constante. A única exceção foi o País Basco. Bendito Amara Berri! O melhor modelo pedagógico que conheci até agora.

Que me desculpem as docentes (e as mães 100% cumpridoras), mas falharei. Vou privilegiar a brincadeira às propostas curriculares porque casa não é escola. E férias são férias!

Neste momento, a minha prioridade é apenas uma: a saúde física e mental. Infelizmente, a primeira escapou-nos, mas cuidarei ao máximo da segunda para o bem de toda a família. Estivemos os quatro doentes. Uns durante sete dias e outros durante mais de três semanas. Os dois médicos consultados são da opinião que foi a covid-19 que nos provocou febre, tosse constante, perda do paladar, cansaço e dificuldade em respirar. Nunca saberemos porque não realizámos os testes. Não éramos prioritários. A visita do coronavirus ou do seu irmão-gémeo foi longa e dolorosa, sobretudo para os asmáticos cá de casa. Fiz o que pude para evitar o hospital. Juntos, vencemos. Como a 9 de fevereiro de 2009 em que mãe e filho fomos reanimados quase ao mesmo tempo. O Stan foi levado para o serviço de neonatologia da maternidade onde permaneceu 21 dias e eu segui de ambulância para o hospital Georges Pompidou, ambos em Paris. A embolia amniótica empurrou-me para os cuidados intensivos e o serviço de pneumologia. Cinco dias e cinco noites. E hoje dou por mim a pensar em todos os seres humanos que dependem de um ventilador.

Felizmente, não temos televisão o que nos evita assistir à contagem em direto do número de mortes provocadas pela pandemia. Ideias para passar o tempo não nos faltam e aplicamos a terapia do riso quase diariamente.

Rir

Não sei se rir é o melhor remédio, mas ajuda muito! Rimo-nos sobretudo de nós próprios: dos disparates da Mathilde, das histórias do Stan, do meu desenho que parece um cão com bigodes de gato e orelhas de coelho, das partidas do Sébastien, das sessões improvisadas de karaoke. Ao longo do dia, somos invadidos por gargalhadas espontâneas e incontroláveis. Fazer o aerossol ao mesmo tempo que vimos os filmes do Louis de Funès é um bálsamo para o corpo e a alma.

Inventar

Acredito que o mundo não será o mesmo quando regressarmos à rua. Mas isso não tem que ser necessariamente mau. Até lá, talvez devêssemos aprender com as crianças a viver agora. Como diz a Mathilde, o presente é tão rápido que já é passado e o futuro vem daqui a pouco. Resiliência, empatia, criatividade e imaginação são as ferramentas. O Sébastien pensa em receitas sem farinha porque esta já esgotou há semanas. Os filhos inventam jogos e brincadeiras e apresentam o noticiário todas as noites para a família através do WhatsApp. Eu vou escrevendo e arranjando maneira de pôr toda a gente a fazer ginástica logo pela manhã. Descobrimos dons até então impensáveis. Arriscamos, falhamos e voltamos a tentar.

Sonhar

Os adultos voltam a ser criança e, todos juntos, ousamos sonhar. Tudo é possível no universo dos sonhos. De repente, aparecem unicórnios, dragões e discos voadores. Fechamos os olhos e estamos todos juntos em Portugal, na casa da avó. Ou então a dar um mergulho na piscina das Canárias. Sonhamos, acima de tudo, com um mundo mais justo, mais unido e mais solidário. E quem disse que os sonhos não se realizam? Basta crer!

Orar

Agradecemos todos os dias tudo o que temos: saúde, casa, família, amigos, comida, água… Damos valor a qualquer banalidade. Para muitos, a vida está presa por um fio, literalmente. Não temos o calor de Fuerteventura nem a família portuguesa, mas estamos gratos por não estarmos fechados no pequeno apartamento de Paris. Louvamos o trabalho de todos os que estão lá fora: médicos, enfermeiros, funcionários da limpeza e dos supermercados, agricultores, camionistas e tantos outros. E reconhecemos que temos muita sorte porque nos calhou o menos difícil: ficar em casa.