Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és, diz o ditado popular. No caso de Luiz Henrique Mandetta, o ministro da Saúde demitido pelo Presidente Jair Bolsonaro em plena pandemia, a sua imagem pública transformou-se radicalmente em função da companhia. De conservador suspeito de fraude em licitação, tráfico de influência e saco azul, quando estava nas boas graças de Bolsonaro, o ex-ministro passou a ser elogiado na imprensa brasileira e mundial, por fazer frente ao Presidente, que teima em menosprezar a covid-19. Enquanto a pandemia acelera no Brasil, o país mais afetado na América Latina, a popularidade de Bolsonaro afunda cada vez mais e Mandetta ganha prestígio: 64% dos brasileiros concordam que foi errado demiti-lo, segundo o Datafolha. O ex-ministro pode sonhar com voos mais altos: o ano passado, quando a relação com o Presidente já não estava boa, terá ponderado candidatar-se a prefeito da sua cidade natal, Campo Grande. Agora, fala-se numa candidatura a governador de Mato Grosso, em 2022. Ou até, quem sabe, à presidência do Brasil.
‘A família em primeiro lugar’
Nascido há 55 anos, Luiz Henrique Mandetta tinha tudo para singrar na política brasileira. Primo de um senador, de um deputado e de um prefeito, o futuro ministro da Saúde seguiu as pisadas do pai, formando-se em ortopedia no Rio de Janeiro. Fez a residência no serviço de ortopedia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – chefiado pelo pai, Hélio Mandetta, que fora vice-prefeito de Campo Grande. Depois de prosseguir os estudos nos Estados Unidos, Mandetta entrou na política em 2005, recebendo Secretaria de Saúde de Campo Grande das mãos do seu primo, o então prefeito Nelson Trad Filho (PSD), conhecido como Nelsinho. Recentemente, Trad Filho fez manchetes: hoje é senador e foi o primeiro membro do Congresso a dar positivo à covid-19, após acompanhar Bolsonaro numa visita aos EUA.
A carreira política do futuro ministro enfrentou percalços: suspeitou-se que, em 2008, a troco de favores eleitorais, Mandetta tenha influenciado a contratação de uma empresa para informatizar a saúde da cidade, com um custo de 9,97 milhões de reais (1,71 milhões de euros). O pagamento foi feito mas o serviço nunca foi efetuado, verificou a Controladoria-Geral da União, em 2014 – foi aberto um processo, que não foi concluído, e Mandetta negou tudo. Anos depois, em 2019, seria atingido com a manchete «Luiz Henrique Mandetta: a família em primeiro lugar», na Veja, onde se sugeria que mantinha a longa tradição de nepotismo da família: a sua filha, a advogada Marina Alves Mandetta, terá ganho toda uma nova carteira de clientes com a nomeação do pai como ministro, que a levou «a tiracolo» para encontros com empresários da área da saúde.
‘Navios negreiros do século XXI’
Quanto o escândalo de corrupção surgiu, Mandetta já se tornara deputado federal dos Democratas (DEM), fazendo campanha ao lado do pai, com o slogan «voto saudável». Ocupou o posto entre 2010 e 2018, posicionou-se contra o aborto e a favor do uso medicinal da marijuana. Ganhou notoriedade como feroz opositor do programa Mais Médicos, criado em 2013, para enfrentar a escassez de médicos no remoto interior do país.
Face à falta de voluntários, com apenas de 11% das vagas preenchidas em dois meses, o Governo de Dilma Rouseff virou-se para Cuba, que enviou mais de 8 mil médicos para o Brasil. Eram pagos abaixo do salário médio, com uma percentagem a ser entregue a Havana: vinham nos «navios negreiros do século XXI», em conluio com o Partido dos Trabalhadores (PT), acusou Mandetta na altura. Ainda assim, menos de dois anos depois, a Profissão Repórter verificou que em pequenas cidades, como Serra do Ramalho, na Bahia, nunca tinha havido médico residente – os cubanos foram os primeiros. O programa sofreu um duro golpe no Governo de Bolsonaro, com a saída de Cuba, devido à escalada na retórica do Presidente.
‘Tchau, querida!’
Apesar do seu perfil de técnico, bem diferente do incendiário Bolsonaro, Mandetta manteve com este uma longa relação. Aliás, esteve entre os primeiros a aproximar-se do futuro Presidente, quando este era apenas um deputado de extrema-direita à margem da política brasileira, conhecido pelo saudosismo da ditadura militar – não o fenómeno em que se viria a transformar. Já tinham estado juntos na oposição ao PT e no impeachment de Dilma, em 2016. Mandetta esteve entre os deputados que gritaram «tchau, querida!», apesar de a Presidente estar a ser afastada por não agir face a um alegado saco azul na Petrobrás – o mesmo tipo de crime pelo qual Mandetta fora investigado.
O futuro ministro da Saúde estava excecionalmente bem posicionado para se tornar o elo de ligação entre a direita tradicional e o bolsonarismo. Mas esta não seria uma tarefa fácil: Mandetta desaparecia quando questionado sobre as políticas mais polémicas, passou a evitar temas como a homossexualidade e chocou com colegas quanto a uma campanha contra a gravidez na adolescência, baseada na abstinência sexual. Tudo piorou com atenção dada por Mandetta aos sinais vindos da China, logo no início de janeiro, para espanto e fúria do Presidente. Este temia sobretudo que a «histeria» das medidas contra o novo coronavírus, uma «gripezinha», nas suas palavras, tivessem impacto na economia – e talvez, por extensão, na sua popularidade.
Granada na mão de Bolsonaro
Quando Mandetta entrou em revolta aberta, defendendo medidas de isolamento social, apoiado por governadores brasileiros, como João Dória, em São Paulo, foi a gota de água. Bolsonaro moveu-se para o demitir, mas o ministro terá sido protegido pelas altas patentes militares. «Está faltando um pouco mais de humildade para ele», criticou Bolsonaro, à Jovem Pan. Contudo, os seus choques públicos com Mandetta só deram mais visibilidade à disputa. Em qualquer circunstância, afastar um ministro da Saúde durante uma pandemia faria estragos. Mas o crescente apoio ao ministro rebelde transformou-o numa verdadeira granada nas mãos do Presidente. Jair Bolsonaro puxou a cavilha na sexta-feira passada, após uma entrevista de Mandetta, particularmente crítica, o deixar sem apoio dos militares. Os estragos estão por avaliar.