Sou dos que pensam que, no contexto singular criado pela pandemia, o estado de emergência se justificou por duas razões. Primeira, para dar ao Governo legitimidade legal para tomar decisões extraordinárias no domínio da mobilidade, da saúde e da economia que não seriam admissíveis num quadro de normalidade. Segunda, para, como cumpre em qualquer democracia que se leva a sério, colocar no parlamento o controlo da amplitude das restrições que uma quarentena geral severa necessariamente determinaria.
Sou dos que pensam também que foi o comportamento exemplar da população que travou o passo à expansão exponencial da pandemia. O estado de emergência não foi o essencial. Essencial foi a contenção de cada um. Pouco me importa se ela foi ditada mais pelo medo ou mais pelo sentido de responsabilidade. Foi ela que, contra os agoiros dos arautos da desgraça, dos opinadores incendiários, dos ressabiados de todas as horas, mas também dos inconscientes relativizadores da agressividade da pandemia, nos permitiu, como sociedade, ganhar tempo para o Serviço Nacional de Saúde manter capacidade de resposta, salvando o maior número de vidas possível. E isso era realmente o essencial.
Essa extraordinária responsabilidade da gente comum contrastou, e de que maneira, com a atuação irresponsável da elite económica. Quando o país clamava por uma estratégia de confinamento, essa elite resistiu a encerrar serviços não essenciais. Quando ficou patente que era imperioso defender o trabalho e o salário de quem tem menos e ficou totalmente desprotegido, essa elite aproveitou para despedir milhares de trabalhadores precários. Quando se exigia uma disponibilidade sem limites de todo o setor da saúde, os grupos privados preocuparam-se, antes do mais, com o dinheirinho do Estado para tratarem doentes. Quando se tornou claro que a recessão não serão números abstratos, mas famílias concretas em perda e em desespero, grandes empresas aproveitaram para distribuir dividendos chorudos aos seus acionistas. Contra o sentido de responsabilidade da gente comum, a elite económica manteve o registo irresponsável de 2008: a crise é a sua política.
Sentido de responsabilidade também de quem soube resistir à agenda securitária dos que clamavam pela geolocalização obrigatória de doentes, pela clausura imperativa dos velhos ou pelo uso do Exército para controlar os cidadãos.
Travada por agora nas suas expressões mais brutais, essa agenda de apoucamento da democracia e do Estado de Direito não se evaporou. O desafio que o período de estado de emergência deixa aos democratas é, pois, grande. E ele consiste em resistir aos cantos de sereia do estado da permanência do estado de exceção como novo normal. Em nome do excecionalismo sanitário – como, antes, em nome do combate ao terrorismo – há quem queira legitimar uma diminuição permanente dos direitos. Ora, austeridade e diminuição dos direitos é uma receita que conhecemos bem e que já mostrou ao que leva. Não é esse, de todo, o caminho de recuperação do país que deve ser adotado desde já.
José Manuel Pureza
Deputado do Bloco de Esquerda