Nada será como dantes? Não exageremos. Passado o vendaval da pandemia (e quando passar), intactos estarão o gosto pela música, nas suas diversas formas, a paixão pela ópera, a atração do teatro, o fascínio das artes visuais (cinéticas ou não). O que está em causa é perceber em que suportes a fruição será possível (ou desejável), como é que os criadores se vão adaptar às novas condições de produção, como é que a distribuição se vai reorganizar. As artes performativas (as que pressupõem aglomerações de público em espaço confinado) serão, a curto e médio prazo, as que vão sofrer mais com estes novos condicionamentos ao consumo de produtos culturais. Talvez por isso os museus (e não apenas os seus spin-offs digitais) recuperem antes das outras atividades: até pela estrutura demográfica e dimensão da procura, os fluxos de visitantes são aí mais governáveis.
Um caminho alternativo possível está apontado pelos grandes distribuidores de cinema em streaming (Netflix, HBO…), que já antes da pandemia vinham a substituir a exibição em sala pela entrega ao domicílio. Um processo semelhante (embora de paradigma diferente) foi aquele que, em plenos anos 1950/60, levou ao início da substituição dos grandes ‘teatros’ de cinema pelas salas-estúdio (art & essai chamaram-lhe os franceses para dar verniz cultural a este processo de redimensionamento da oferta).
Agora, trata-se de, pelo menos durante algum tempo, previsível e infelizmente longo, substituir as salas sociais pela sala de estar familiar, tanto para o cinema como para as outras artes de atuação pública (música, ópera e teatro). Por isso, uma medida imediata é parar com a distribuição gratuita via plataformas digitais, substituindo-a por uma espécie de EoD (entertainment on demand), em que o acesso aos conteúdos é sempre objeto de uma contrapartida monetária, que faz as vezes da bilheteira física até há pouco dominante.
No horizonte próximo, não vai haver gulbenkians à cunha, casas da música a abarrotar, coliseus esgotados, arenas em madonnas sucessivas. Nem vai haver investimento a fundo perdido capaz de assegurar a sobrevivência da produção, com o seu rol de encargos financeiros que, em alguns casos (o da ópera, por exemplo), atingem valores que o público consumidor nem sequer imagina. A ausência de contrapartida, a pretexto da democratização a qualquer preço, é um certificado de óbito antecipado para toda a indústria dos espetáculos. Todo o investimento (quase todo) deve assim ser canalizado para a modernização digital, há diversos anos iniciada por instituições como a Deutsche Philarmonie, em cujo Digital Concert Hall se podem ver, todos os dias e em tempo real, os concertos em cartaz, mediante a aquisição de um bilhete digital. Até há pouco, esta era uma fonte de receita marginal; aposto que, de agora em diante, se vai tornar a principal via de proveitos da bilheteira. O que aqui se diz para os concertos de música erudita aplica-se, com as devidas adaptações, à música não erudita, à ópera, ao teatro e à dança. E, subsidiariamente, a produção nova deve alimentar os canais de televisão (sobretudo, pública), devendo estes perder a lamentável prática de obterem conteúdos à borla, com o argumento pífio de que já ‘oferecem’ o suporte de transmissão. Nada disto substitui the real thing, que é a partilha coletiva da arte e do entretenimento, indispensável em qualquer espetáculo. Mas é um sucedâneo de sobrevivência para um setor ferido na sua dimensão vital: a experiência física da fruição artística.
Que um horizonte (utópico) como este deixe marcas a longo prazo nos hábitos de consumo depende da duração da pandemia e dos novos comportamentos sociais que a ela se sucedam. A retoma plena, se alguma vez existir, não exigirá menos de cinco anos. Mas alguma coisa vai com certeza mudar; para que não mude tudo o que existia antes.
António Mega Ferreira, Gestor cultural