1.Mês e meio de emergência autoriza alguns olhares às respostas à crise. Públicas, privadas e desgarradas.
O poder político viu-se confrontado com forças disruptivas. A clausura, que alarmou a população, e o lockdown económico e social. Sem ter encontrado o ponto de equilíbrio. Sem claros horizontes de saída.
Em emergência, descobrimos de repente que ninguém estava preparado. Governo, sociedade, empresas. E que o mundo não é estável e seguro. Nem a Europa.
2. Karl Popper dizia que a vida consiste em resolver problemas. Nas quarentenas descobrimos falhas sistémicas nas respostas. E factos ignorados.
Revelados pelas televisões, malgrado o tom evangélico de alguns locutores. Exemplos?
Centenas de candidatos a refugiados (a fugir de que guerras?) aboletados em pensões esconsas. Ou milhares de lares ilegais de terceira idade. Muitos encerrados sem êxito (?) pelas autoridades. A expor na vitrina pública as difusas dinâmicas sociais do Executivo de esquerda. Tal como as trapalhadas sucessivas do layoff. Em constantes hesitações burocráticas e recuos. Ou os números em catadupa do desemprego. No tempo da troika, quem perdia o emprego ia procurar trabalho ou emigrava. Hoje, nem uma coisa nem outra. Nem sequer o Estado paga as suas dívidas. Mas arremessa verbas a alguma imprensa, porventura inspirado no êxito d’A Corneta do Diabo do Palma Cavalão.
3. Em emergência, vimos Belém a hesitar nos túneis e nas luzes. E São Bento a embandeirar em arco. A ensaiar já uma dança de passo atrás, passo adiante. E um e outro a disputar os prime times, olhos postos em picos de sondagens. Apregoando que somos os melhores do mundo. Infelizmente, em contágios, somos o sétimo país com mais infetados na Europa a 27. Propósitos atabalhoados.
Em emergência vimos portugueses assustados pelo tom dos telejornais, pela multiplicação contraditória e desconchavada de especialistas, pelos excessivos poderes do Estado. Que, se forem estendidos em calamidade, por artes administrativas e abracadabras unilaterais, desaguam num Governo minoritário que decide sem o Parlamento. Acentuando tiques assertivos ,ia a dizer arbitrários, de um Executivo à solta. Sem oposição credível, refugiada em programas humorísticos ou em pardacenta pleitesia governamental. Sem morder a canela de quem está no poder, como sucede em Espanha, França ou Itália, a sociedade precisa de pesos e contrapesos. Em qualquer crise, em qualquer altura, nunca pode haver só uma visão.
4. Em emergência, a sociedade respondeu melhor do que o Estado. Principalmente o pessoal médico e sanitário.
Num contexto virtual e digital encontraram-se caminhos para ultrapassar obstáculos técnicos e logísticos. Cresceram iniciativas solidárias. Ficaram expostos os apertados limites do sistema hospitalar público, vítima de cativações. Faltas óbvias a montante. E em enxurrada diária de aparições, a DGS a precatar-se, sempre com o bordão governamental. Com notificações em ziguezague, a fomentar o folhetim das máscaras.
Acentuou-se o fenómeno da individualização. Contra o coletivismo. Em detrimento da extrema-esquerda trotskista e marxista que apoia o Governo.
5. Em emergência, redescobrimos desigualdades territoriais. E disparidades. Olhar para Gaia não é ver Penamacor. Presidentes de câmara em exibições avulsas, com vestes de combate para avivar emoções proto-eleitorais. Contribuindo para realçar vantagens do Estado unitário. Putativas regiões não seriam uma panaceia e os corpos intermediários foram postos a nu. As exceções foram raras.
Em emergência, descobrimos que o futebol faz muito menos falta do que parecia. E que vamos ter de continuar a viver com o vírus, noutras vagas.
6. E em emergência vivemos uma Europa que só existe às vezes. Foi cada um por si. No desenho dos confinamentos, nas compras à China, nos calendários das desescaladas. Assimetria perfeita. Bruxelas vai ter de contrariar a irrelevância, as geometrias variáveis, as velocidades diferentes. E quanto antes.
O Governo disfarçou a derrota no Eurogrupo. Mas ainda não convenceu renitentes de que subvenções são preferíveis a dívidas. Anda a tatear, insultando aqui, louvando acolá. Oxalá consiga, mas ainda não vimos ninguém assumir os erros.
Em emergência, vimos que a OMS continua a descarrilar, ao som de tambores longínquos. E a ONU de Guterres a desaparecer de cena, arrebitando de vez em quando para banalidades. Tudo isto não ajuda o multilateralismo, a coxear em curva descendente. Que vai ser preciso inverter. E com a China a marcar pontos para futuros equilíbrios estratégicos.
7. Em emergência, a economia contraiu. O precipício pode chegar aos 15% do PIB. Para não falar da dívida. A graduação do desconfinamento será um teste para o Governo na ótica dos agentes económicos. Cada setor empresarial tenta puxar o subsídio à sua atividade. As PME e o turismo seriam os mais atingidos. Ontem, o Governo apontou caminhos. Mas não soube planificar a esperança.
O ministro das Finanças disse que o país nunca esteve tão bem preparado para uma crise como esta. Tem de o provar. Seria bom menos expetativas com os dinheiros da União Europeia. E seria ainda melhor que a narrativa futura do Governo não venha assacar ao covid o previsto contragolpe económico. E, sobretudo, a hecatombe social. No esforço inglório de encontrar sinónimos para a austeridade. E, provavelmente, sem resistir aos cantos de sereia para nacionalizar. Com gorjeios dentro da sua ala esquerda, como se não bastassem trompetas pós-geringonça. Será a nova normalidade?
Como já se diz por aí, ainda vamos ter saudades do tempo da troika.
António Martins da Cruz, Embaixador