Por agora, os clássicos do confinamento ainda são resgates feitos no passado. Obras, sejam elas livros, filmes ou outros registos, que parecem recriar-se face à luz específica que se entranha com outra acuidade, outra urgência, na trama que vai da ficção a uma realidade um tanto insituável. No que toca a monstros, está longe ainda de se avistar uma barbatana ou o dorso de uma baleia branca que sirva de estupenda metáfora para a ameaça com que nos vemos confrontados. Enquanto aguardamos que se formem as primeiras nuvens no campo artístico inspiradas pelas vivências actuais, a Netflix firmou o maior êxito desta temporada infernal de confinamento com um filmeco de acção que regurgita uma série de clichés, mas que tem o mérito de empacotar em duas horas todas as expectativas que se põem às cavalitas de uma fita com explosões, tiros e estalos. Protagonizado pelo grande naco australiano Chris Hemsworth, Extraction está em linha para ser visto em 90 milhões de residências segundo os dados do serviço de streaming. Realizado por Sam Hargrave, o filme irá tornar-se, assim, o alvo a abater entre a discrepante lista de sucessos que a emergência sanitária tem promovido, num momento em que o isolamento cria um fenómeno de colmeia global, em que o sofá se tornou um poleiro onde, nós, como araras, engaioladas imitamos um coro trágico a partir das frases mais repetidas nesta sintonia de frequências.
No filme, Hemsworth põe de lado o machado de Thor, tentando provar que consegue carregar às costas sozinho um blockbuster que caia sobre a Terra como um trovão esmagador, e surge um pouco mais amassado, como um mercenário recrutado para resgatar o filho (Rudhraksh Jaiswal) de um líder de um cartel indiano enfiado na cadeia. A acção desenrola-se nos bairros insalubres de Daca, e o protagonista, Tyler Rake, é um gigante que faz os possíveis por não se parecer demasiado com um deus de Hollywood, com o cabelo desgrenhado, os olhos afundados nas órbitas, assombrado por um remorso sulfúrico, e que anda em busca de uma missão suicida ou do paliativo de uma redenção. Esta surge-lhe com a hipótese de salvar Ovi Mahajam (Jaiswal), o miúdo de 14 anos com um bom coração, que está a ser perseguido pelo rival do pai, um canastrão um tanto efeminado chamado Asif. O filme tem o mérito de não ser um pastelão como é o caso de Sérgio, mais outra produção medíocre da Netflix, que sacrifica o talento de Wagner Moura ao interpretar o carismático alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos que foi morto por terroristas no Iraque.
Extraction foi produzido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, realizadores de Avengers: Endgame, e estreou no dia 24 de Abril, estando a caminho de bater o resultado de outra produção desmiolada que triunfou no serviço de streaming: 6 Underground, assinada por esse ilusionista estroboscópico que é Michael Bay, um filme que foi visto em 83 milhões de residências em todo o mundo. Assim, tendo deixado a crítica bastante dividida, Extraction assalta o pódio acompanhado pelas séries documentais Tiger King e The Last Dance, a primeira sobre um exuberante pacóvio homossexual, amante de tigres e armas, que criou um deplorável zoo e enfrentou a ira dos naturalistas, acabando por se enredar nas malhas da justiça, e o segundo sobre o reinado dos Chicago Bulls na NBA, sob a liderança e o exemplo de Michael Jordan.