«Quando as normas de tolerância mútua são frágeis, é difícil sustentar a democracia».
In Como as Democracias Morrem – S. Levitsky e D. Ziblatt
Madrid, Paris, Nova York… Rio de Janeiro, Hong-Kong, Manila, são agora cidades onde uma névoa de poluição que durante anos persistiu, foi substituída por um ar cristalino onde o azul do céu pode ser, finalmente, apreciado pelos seus habitantes.
Nos canais de Veneza a água, sempre turva, ganhou limpidez e até as medições do buraco do ozono, dizem-nos, que está em regressão…
As cidades estão paralisadas e algumas têm sido invadidas por animais selvagens, que há muito andavam arredios. Os aviões estão parados em terra, os automóveis em movimento contam-se pelos dedos, a indústria e os serviços vacilam, a agricultura acumula excedentes, o desemprego aumenta…
As sociedades reorganizam o seu funcionamento contra um inimigo desconhecido, para o qual, pelo menos por enquanto, não se vê remédio nem vacina. Há quem trabalhe a partir de casa, aliando o trabalho à necessidade de cuidar dos filhos sem escola ou a vê-la pela televisão, as reuniões digitais multiplicam-se, os restaurantes levam as refeições a casa, os carros ficam à porta (logo agora com a gasolina tão barata e o estacionamento gratuito…), a violência doméstica e os crimes digitais aumentam…
São tempos novos para os quais os filmes de ficção nos alertaram. Mas, na verdade, sempre achámos que Hollywood exagerava. A realidade é outa coisa, pensávamos nós. Contudo aqui chegámos.
Em casa vamos lendo os jornais e ouvindo os noticiários. O confronto entre a economia, o direito à saúde e ao bom ambiente, transparece. Nunca foi tão patente a dicotomia entre o crescimento económico e as externalidades que ele provoca.
Precisamos da retoma. Mas muitos dos que acham que a economia deverá ser a primeira prioridade, são os mesmos que fazem planos para não sair de casa tão cedo e que acham que alguém lhes deverá pagar os prejuízos. Já os outros, os que acham que a saúde deve ser a prioridade das prioridades, dizem que estão em casa muito bem e que alguém terá de lhes pagar o confinamento. Alguém que pague, leia-se, o Estado, que apesar da irresponsabilidade de cada um terá sempre a culpa das dentadas do malfadado cão (do vírus), ainda que o animal não lhe pertença.
Por essa Europa a que pertencemos, feita na sua origem para ser solidária e criar bem-estar (diziam-nos), assobia-se para o lado e parece que ninguém quer perceber que num espaço em que mais de 70% do comércio é feito entre os seus membros, o prejuízo de uns será sempre o prejuízo dos outros, o mesmo é dizer que grande parte da ajuda que vier para o sul regressará ao norte. É assim no mundo e é assim na Europa.
Por cá os banqueiros vão falando na importância do apoio à estabilidade do sistema financeiro, como se ele fosse um fim em si mesmo, e não um instrumento. Como se ele devesse estar à frente de tudo o resto e não com funções de apoio aos outros setoresda economia.
Mas, dizem-nos, o mundo que aí vem será diferente do que existia. Será um mundo reorganizado porque a humanidade se viu confrontada consigo mesma e com as suas insuficiências. Porque nestes tempos de confinamento, os valores da liberdade que deixámos de ter, da igualdade que se viu ser uma miragem e da fraternidade que tem dias, nos obrigaram a repensar a vida.
Mas, afinal, o que poderá ser diferente? O que vem aí? Será que vem algo de inovador?
Deixemo-nos de ficções. O que vem aí são milhões de milhões para que tudo regresse ao mesmo… se deixarmos que regresse. E, chegados ao ponto de partida, concluiremos que não aprendemos nada com o que se passou: os Trumps e Bolsonaros do futuro, disso mesmo nos darão testemunho.
Tenho a secreta esperança de estar enganado.
Luís Natal Marques, Presidente da EMEL