Portugal continua a importar lixo de vários países europeus, mesmo em contexto da pandemia de covid-19. E um dos grandes ‘clientes’ é Itália, um dos países mais afetados pela covid-19 nos últimos meses. Sendo que os resíduos que este país exporta para aterros portugueses podem ser já resultado do combate à doença, contendo máscaras ou luvas deitadas para o lixo pela população italiana. Esta hipótese é avançada ao SOL por Cármen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus: «Já devemos estar a receber resíduos do período de covid-19, com mistura de máscaras e luvas, sem garantias de estarem ou não contaminados».
No entanto, no caso concreto dos resíduos provenientes de Itália, não deverá haver risco de contágio, uma vez que «não haverá contacto, porque os resíduos entram diretamente para deposição em aterro», adiantou Cármen Lima. Ainda assim, a especialista alerta para duas situações especificas: «Nós não sabemos, no caso dos trabalhadores da alfândega e dos motoristas que efetuam o transporte, se não há verificações de carga e se eles estão protegidos de forma a evitar o contacto com a carga». Se tal estiver assegurado, não existe contacto, nem perigo de contágio.
Rui Berkemeier, da associação Zero, também afasta a hipótese de contaminação e aponta como mais preocupante o lixo produzido em Portugal. «A questão da covid-19 coloca-se muito mais nos nossos resíduos do que nos resíduos importados, pela razão simples de tempo, a maior quarentena do lixo é no próprio barco, durante o transporte», explicou Rui Berkemeier, acrescentando que, «em todo o caso, quer no nosso resíduo, quer no importado, ele vai para aterro, portanto não vai estar em contacto com as pessoas». Por outro lado, e à semelhança do que acontece em Portugal, os resíduos urbanos «em Itália poderão estar a ser sujeitos a quarentena», explicou Cármen Lima.
Em Portugal, as normas relativas ao lixo são agora, em contexto de pandemia, mais restritivas. No caso da reciclagem, quando o plástico, por exemplo, chega à estação de triagem, tem de estar três dias em quarentena.
Além disso, «aquilo que está autorizado em Portugal neste momento é um circuito direto entre o canal de produção e a deposição em aterro ou incineração», explica a Quercus.
A propósito, esta semana, a PSP alertou para a necessidade de colocar máscaras e luvas nos contentores de lixo indiferenciado e não nos contentores de reciclagem.
Lousada pede esclarecimentos
A questão do lixo importado não é nova, mas a discussão intensificou-se depois de Pedro Machado, presidente da Câmara de Lousada, ter pedido esclarecimentos à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) sobre os resíduos depositados num aterro local provenientes de Itália.
Em resposta ao município, a APA esclareceu que se trata de «resíduos não-perigosos provenientes tanto da indústria, como da recolha urbana, que já sofreram tratamento, sendo que estes últimos são equivalentes aos resíduos produzidos nas nossas casas». «Os movimentos em curso respeitam as notificações autorizadas o ano passado, pelo que os resíduos em causa foram produzidos antes da pandemia ter tido o seu início», acrescentou a entidade.
Ao SOL, Pedro Machado, presiente da Câmara Municipal de Lousada, explicou que «solicitou à Agência Portuguesa do Ambiente, à Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e ao SEPNA, um pedido de esclarecimento relativo ao processo em questão, nomeadamente se o mesmo se encontra devidamente licenciado e em que termos, a tipologia de resíduos, o modo de fiscalização e acompanhamento implementado e respetivas medidas de mitigação de externalidades», acrescentando que «a APA enviou um comunicado de imprensa sobre o assunto, mas ainda não respondeu formalmente à Câmara Municipal».
O município de Lousada avançou ainda que já pediu análises a uma entidade creditada e está também a ser constituída uma comissão técncia independente para avaliar a natureza dos resíduos. «Mesmo antevendo que se trate efetivamente de resíduos banais, consideramos absurda a sua importação com destino a deposição em aterro, não apenas pela pesada pegada ecológica que o seu transporte e armazenamento acarreta, mas também pelo sinal dissonante e de contraciclo face aos desígnios veiculados pelo novo Pacto Ecológico Europeu», acrescentou Pedro Machado. A solução que o municipio dá é que os resíduos que chegam sejam encaminhados para um centro de valorização e não para um aterro, como acontece. «Se o problema não ficar resolvido nos próximos dias, a Câmara Municipal vai recorrer a todos os meios legais ao seu dispor para obstar a que esses resíduos continuem a ser depositados no aterro da RIMA, nomeadamente através da propositura de uma providência cautelar,».
A juntar ao aterro de Lousada, há mais dez com licença dada pela APA para receber resíduos de outros países europeus, como é o caso de Valongo ou da Azambuja – dois aterros que têm sido nos últimos tempos alvos de denúncias feitas quer às autarquias, quer às associações ambientalistas.
O SOL sabe nas últimas semanas houve denúncias de novos e suspeitos descarregamentos de resíduos no aterro de Valongo.
Futuro dos aterros em Portugal
A estratégia implementada em Itália para a gestão dos resíduos suburbanos não foi adequada e levou a um rápido esgotamento dos aterros – o que aconteceu há cerca de quatro anos e, desde essa altura, Itália começou a exportar lixo para Portugal e ainda não parou. A Comissão Europeia pede aos países para respeitarem o critério de proximidade, mas é muito mais barato para Itália enviar lixo para Portugal do que, por exemplo, para a Suíça.
O problema está agora na sustentabilidade dos aterros portugueses. «Se nós estamos a encher os nossos aterros com resíduos provenientes de outros países – e nos últimos anos este movimento de importação tem vindo a crescer – poderá por em causa, no futuro, o nosso próprio destino, a nossa própria solução a dar a esses resíduos», explicou Cármen Lima. E sublinhou: «Podemos encher estes aterros mais depressa do que o que estava previsto».
Quando os aterros atingirem o seu limite de capacidade, a única solução será instalar novos aterros, com todos os custos financeiros e ambientais que uma construção deste género implica. Além disso, um aterro «é sempre uma infraestrutura que tem sempre muita dificuldade em conseguir instalar-se seja em que localização for», acrescentou a coordenadora da Quercus.
A partir de julho de 2020, Portugal vai «limitar a deposição direta de resíduos urbanos não triados em aterro», avançou Cármen Lima. Ou seja, terá de haver um maior critério na seleção do lixo que vai diretamente para aterro – tratamento de fim de linha e última solução a equacionar – e que pode ser triado. «O que recebemos por parte de Itália e de outros países são essencialmente resíduos de plástico que estão a ser diretamente depositados em aterro. Temos uma limitação para limitar os recicláveis que são colocados em aterro e estamos a permitir receber recicláveis diretamente de outros países e depositá-los nos nossos aterros que deveriam ser direcionados para os resíduos que não têm destino de triagem ou de valorização». Ao invés da estratégia de gestão de resíduos urbanos, «aquilo que é equacionado é o preço e é mais competitivo depositar determinados resíduos em aterro do que encaminhá-los para triagem e reciclagem», explicou a Quercus.
No início do ano, em Viana do Castelo, João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente, afirmou que, a partir daquela altura, Portugal iria apenas autorizar a receção destes resíduos «em função da imperiosa necessidade» do país exportador e da capacidade nacional.
Agora, Cármen Lima aponta que, «aquilo que sabemos de denúncias que recebemos é que aos portos de Leixões, Setúbal e Sines, chegam em média, por semana, 800 a 900 contentores marítimos de resíduos».
O SOL pediu esclarecimentos ao Ministério do Ambiente e da Ação Climática e à APA sobre os resíduos importados, mas até à hora de fecho desta edição não nos foi enviada qualquer resposta.