Ele foi o Homem que meteu o beat em afrobeat e que ajudou a elevar a elevar a música africana ao pedestal que merece. Tony Allen, o icónico baterista nigeriano, morreu na semana semana passada. A sua abordagem ao instrumento de percussão influenciou uma quantidade infindável de músicos de todo o planeta, desde o rock alternativo dos Talking Heads, aos Red Hot Chilli Peppers, ao hip-hop – é samplado em músicas de Beyoncé, The Avalanches ou J Cole -, ou à eletrónica de Jeff Mills.
O músico tinha 79 anos e, segundo o seu agente, Eric Trosset, morreu de ataque cardíaco na noite de 30 de maio (dia internacional do jazz) algo que levantou algumas dúvidas aos que estavam mais próximos de Tony. Ele «estava em excelente forma» física, adiantou o agente. Aliás, ainda este ano, no dia 20 de março, tinha lançado um disco, Rejoice, uma colaboração com o trompetista sul-africano Hugh Masekela (que faleceu no ano passado com 78 anos).
«Que o último trabalho editado de cada um destes verdadeiros gigantes tenha recebido o apropriado título Rejoice serve como um poético indicador da atitude que sempre demonstraram possuir perante a música”», escreveu Rui Miguel Abreu no site Rimas e Batidas sobre este último disco.
Mesmo após a sua morte, Tony Allen continua a surgir em músicas novas. Poucos dias após a sua morte, os Gorillaz de Damon Albarn, que integrou com Allen as fileiras do supergrupo The Good, the Bad & the Queen, partilharam uma música nova, How Far?, gravada pouco antes da confusão gerada pela pandemia.
«Não quero estagnar e ficar aborrecido», tinha dito o baterista a propósito deste trabalho a Robin Denselow, do Guardian. «Não podes continuar a fazer sempre as mesmas coisas».
Um legado eterno
Tony Allen nasceu em Lagos, a maior cidade nigeriana, a 12 de agosto de 1940, e começou a construir o seu percurso musical aos 18 anos, idade em que decidiu aprender a tocar bateria enquanto trabalhava como engenheiro de uma rádio.
Autodidata, as suas inspirações surgiam de todo o lado: de casa, o seu pai, James Alabi Allen, mecânico, um ávido consumidor de jùjú (estilo musical do povo iorubá da década de 1940), que se opôs à carreira do filho («na altura, os músicos eram mais ou menos pedintes, ou pior», explicou Allen ao Guardian); dos Estados Unidos da América, especialmente de mestres do jazz como Max Roach ou Art Blakey, mas também conterrâneos africanos, por exemplo, Guy Warren, baterista creditado como criador do afro-jazz.
Depois de umas aventuras a acompanhar o trompetista Victor Olaiya, Allen foi contratado para tocar clavas. E em 1964 Fela Kuti convidou Tony para fazer uma audição para a banda que estava a formar .«Porque é que és a única pessoa na Nigéria que toca assim?», questionou-o, referindo-se ao estilo do baterista que mistura o jazz com o highlife, estilo musical originário de países como o Gana, Serra Leoa e Nigéria, e que incorporava elementos da música tradicional africana e elementos da música popular ocidental.
O primeiro nome da banda de Fela Kuti viria a ser Koola Lobitos e foi com esta designação que os músicos fariam a sua primeira tour nos Estados Unidos. Depois desta viagem e do contacto com o trabalho de ativistas como Malcolm X ou Eldridge Cleaver, e de conhecer a música de James Brown, Sly Stone e The Temptations, a banda passou a incorporar mais elementos de funk à já inovadora mistura de jazz e highlife. E Fela Kuti passaria a escrever letras com um sentido mais político. A banda que acompanhava Kuti passou a designar-se de Africa 70 e foi assim que nasceu o Afrobeat.
«Queria fundir todas as batidas numa só», disse Allen à rede de televisão brasileira GLOBO, em 2012. «Adorava [a banda de James Brown], mas não queria copiar ninguém. Afinal, sou nigeriano, não americano. Cheguei ao ponto de ser o único músico da banda que tinha total liberdade de criação. Tornei-me no diretor musical do Africa 70, a base das músicas era minha. O resto era o Fela quem escrevia e passava para os outros instrumentistas.»
Esta prolífica colaboração resultou em mais de 30 discos, nomeadamente álbuns seminais como Zombie (1977) ou Expensive Shit (1975) e elevaram Fela Kuti e os Africa 70 a um estatuto de culto internacional. Em 1971, Ginger Baker, baterista dos Cream e grande fã da banda, convidou os músicos a gravarem um disco nos estúdios da Abbey Road, trabalho este que acabou por ser Live!, lançado no mesmo ano, um disco ao gravado ao vivo onde o baterista inglês se junta à banda. O disco encerra com um solo de bateria de 16 minutos interpretado por Tony Allen e Baker.
O músico inglês Brian Eno, uma das mais influentes figuras da música eletrónica e ambient, considera o nigeriano «um dos maiores bateristas que alguma vez viveu». O produtor ouviu a bateria de Allen e a voz de Kuti pela primeira vez quando comprou o álbum Afrodisiac (1973) numa loja de artigos em segunda mão. «Mudou toda a perspetiva que tinha do que deveria ser a música», contou. «Quando conheci os Talking Heads e falámos sobre fazer música juntos, mostrei-lhes este disco e disse: ‘isto é a música do futuro’. Eno acabou por produzir alguns dos mais importantes álbuns dos Talking Heads, como Remain in Light (1980) e Fear of Music (1979) onde as influências do afrobeat e afrojazz se tornam preponderantes na sua construção musical.
Tal como já foi anteriormente referido, Tony Allen nunca estagnou. Depois de ter saído da banda de Fela Kuti, em 1979, descontente com o estilo de vida caótico e a falta de organização do líder do conjunto, («não podem haver dois capitães no mesmo navio», terá dito o baterista), o músico acabou por formar as suas próprias bandas e projetos a solo.
Ao longo da sua carreira explorou os mais diversos estilos musicais e gravou com músicos de todo o planeta como Grace Jones, Charlotte Gainsbourg, King Sunny Adé, Manu Dibango, Ray Lema, Jimi Tenor, Ty, Skepta, Ernest Ranglin, Sébastien Tellier, Jarvis Cocker, Air, Flea, Moritz Von Oswald ou Jeff Mills, com quem tinha, em Portugal, duas atuações agendadas, no festival Lisb-on Jardim Sonoro (onde esteve também em 2018) e outra no dia 26 de maio no Teatro da Trindade.
A qualidade técnica do músico vai ser para sempre relembrada no panteão daqueles que mudaram a música, mas, quem o conheceu, irá levar consigo o lado mais humano e pessoal do artista que se mostrou disponível para com os jovens que se mostravam interessados na sua arte.
«[O Tony Allen] costumava rir-se quando eu estava a tocar e dizia-me: ‘porque é que é tudo tão agressivo?’ Eu respondia: ‘O que queres dizer? É a bateria, foi para isso que ela foi feita!’ Por isso as nossas primeiras lições tocámos algumas batidas das músicas do Fela Kuti muito calmamente juntos, enquanto tentava perceber tudo o que se estava a passar na música e o que é que tornava aquela batida tão poderosa para além da força bruta», relembrou ao Guardian o baterista Femi Koleoso, membro dos Ezra Collective, banda que faz parte da nova cena de jazz londrino que olha para o afrobeat de Fela e Allen com o mesmo respeito que um Miles Davis ou um John Coltrane. «Uma das coisas que aprendi com ele são as diferentes formas que existem para fazer as pessoas dançar. Vais fazer um ritmo simples e lançar uma plataforma para todos poderem dançar ou vais fazer algo mais complexo? Aprendi tudo isso com ele. Quer esteja a tocar com a Jorja Smith ou com os Ezra Collective, vais sempre ouvir algo que eu posso apontar e dizer: aprendi isto com o Tony Allen. Ele é, sem sombra de dúvida, a minha maior influência musical».