Mário Centeno não alinhou na manobra de desresponsabilização política montada pelo primeiro-ministro (PM), no Parlamento, para esconder a normalidade da gestão financeira de Portugal que, ao contrário da narrativa socialista, continua a ser conduzida diretamente de Bruxelas ou Frankfurt.
Com a troika, a União Europeia impôs aos Estados-membros intervencionados, mais ou menos secretamente, personagens fora do contexto político local, uma espécie de procônsules, chegando, no caso italiano, a obrigar a improvável coligação entre o M5S e a Liga a designar Giuseppe Conte para primeiro-ministro.
Em Portugal, Passos Coelho teve que aceitar Vítor Gaspar e agora, o PS teve que nomear Mário Centeno, que António Costa não conhecia nem do elétrico. Competia-lhes a defesa dos interesses da Europa (leia-se, dos credores alemães) e subordinados a esses, os interesses de Portugal.
Mas, que se passou? Objetivamente, a Europa não podia deixar cair o Novo Banco. A história contada nesta quarta-feira, por Centeno, é divertida, parece razoável, mas não é toda a verdade.
Com efeito, o problema não é a credibilidade do sistema bancário português. O problema é a Europa. O colapso de um banco comercial da UE, no presente contexto económico, desafiaria as narrativas mais criativas e teria consequências não só na fragmentação monetária da Europa, mas no próprio Euro.
Ainda por cima, a posição do Tribunal Constitucional alemão, na semana passada, não ajudava nada e era necessário acabar rapidamente com qualquer possível ‘ruído’. E, Portugal foi apenas, e mais uma vez, irrelevante. Apenas um efeito colateral…
Vamos por partes.
Na semana passada, o Tribunal Constitucional alemão considerou o programa de compras do setor público (PSPP) do BCE inconstitucional, pois violaria o princípio da proporcionalidade e porque o ‘quantitative easing’ teria efeitos colaterais para os investidores alemães.
Uma decisão destas, em tempos de pandemia, poderia levantar dúvidas sobre se as atuais compras do BCE também seriam ilegais, para além da discussão do princípio que um tribunal nacional não pode declarar ilegal uma norma de nível europeu, contestar um Acórdão do TJUE ou pedir explicações sobre os procedimentos de um órgão independente multilateral como o BCE.
Mas, mesmo que o direito europeu não se subordine à fiscalização do BVerfG alemão, o próprio princípio da proporcionalidade, alegado no seu Acórdão, vai obrigar, de agora em diante, o governo de Merkel a limitar a perspetiva europeia aos interesses da Constituição e dos aforradores alemães.
O Bundesbank tem três meses para saltar fora do PSPP ou explicar-se. Provavelmente vai arranjar-se uma explicação, de modo a que se construa uma solução pragmática. Mas esta exigência de testes de proporcionalidade causa dúvidas sobre o governo da Eurozona, no qual se inclui, necessariamente, a União Bancária.
Daí a urgência e a necessidade de não criar mais fricções.
Num contexto destes, deixar cair um banco e colocar em causa a União Bancária – ainda por cima, quando, depois do irresponsável experimentalismo do BCE em Portugal, pouco ou nada foi feito – era crítico para a ‘confiança’ no sistema financeiro europeu e comprometeria a continuidade o euro.
Foi, portanto, uma ordem do BCE, abrupta e sem esperar por qualquer narrativa política (como prefeririam Costa e Marcelo) que precipitou o pagamento dos 850 milhões ao Novo Banco no dia seguinte, por muito pouco éticos que pareçam os prémios dos gestores ou por muito usurário que pareça o negócio da Lone Star.
Tudo se precipitou com a urgência do BCE e António Costa, como sempre faz, foi obrigado a mais um número de contrainformação, muito bem encenado, apenas para aligeirar as suas responsabilidades, atirando as culpas ao ministro das Finanças e ao Banco de Portugal que, por dever de ofício (e missão), deveriam ficar calados.
Teria sido genial se Centeno tivesse participado na encenação. Mas, provando que a origem da sua legitimidade e que as suas prioridades são outras, o ministro não se calou e acusou o PM.
Desgastado pelo descaramento do seu ministro, Costa ainda tentou a fuga para a frente, antecipando recandidatura presidencial de Marcelo, na visita à Autoeuropa. Com isso desviava a atenção de Centeno e surpreendia a esquerda do PS, que poderia explorar o sucedido.
Do lado do PSD, acossado pela ocupação do seu espaço, Rui Rio atirou onde o PM estava mais frágil e ignorou a questão presidencial. Se fosse ele, disse, «demitiria Centeno».
O primeiro-ministro minoritário não tinha condições políticas para o fazer, mesmo com o apoio do presidente da República, e acabou por negociar a trégua ‘a prazo’ com o seu ministro, vergando-se ao BCE e não conseguindo disfarçar a erosão da sua autoridade, arrastando consigo o próprio Marcelo.
Depois de diminuído no ranking do Governo, Mário Centeno fez, agora, prova de prima-dona. Só que, ingénuo, acabou por denunciar o verdadeiro ‘dono disto tudo’.