por Filipa Moreira da Cruz
Só quem te conhece mal é que se atreve a concluir, erradamente, que és a nossa irmã gémea. Tu és ímpar, singular, cosmopolita, multicultural. Berço de histórias de mil e uma noites, de intrigas entre reis e rainhas, de uma guerra civil sangrenta e de uma ditadura franquista. Terra de montanhas, serras e mesetas banhada pelos mares Mediterrâneo e Cantábrico e pelo oceano Atlântico. Paisagens de sonho cobertas pela neve dos Pirenéus, da Serra Nevada e do monte Teide. As águas translúcidas de Formentera e as praias de areia dourada da costa de Cadiz fazem de ti única e especial. E que dizer das sete ilhas encantadas que arrebataram o meu coração? Foste a minha casa durante sete anos, repartidos por três lugares: Tenerife, San Sebastián e Fuerteventura e só por isso ser-te-ei eternamente grata.
Muitos consideram-te vaidosa, arrogante e até egocêntrica porque os teus sentem orgulho em ti e em tudo o que ofereces. E, como se fosse pouco, ainda criaram a ‘marca Espanha’ que tem como embaixadores, Rafael Nadal, Antonio Banderas, Ana Botín, Pau Gasol, Fernando Alonso, entre outros. Eu peço-te apenas que partilhes um bocadinho dessa magia com os do meu país que tanto teimam em deitar abaixo tudo o que é nacional.
Falo, leio, escrevo, canto e sonho em castelhano regularmente. Faço-o por gosto e, acima de tudo, por necessidade. Lo llevo en la sangre. Ou não tivesse eu antepassados nascidos em Santiago de Compostela e Valladolid. Conheço Espanha quase tão bem como Portugal e são poucas as regiões que ainda não visitei. Este amor incondicional por nuestros hermanos já vem de família. Durante anos o aniversário da minha mãe era sempre passado no país vizinho. Mais tarde, empenhei-me em não romper a tradição. Foram muitos os dezembros celebrados em Bilbao, Sevilha, Mérida, Ávila, Girona, Toledo, Corunha…
O curso de Espanhol para estrangeiros na universidade de Málaga e as conferências em Salamanca e Gijón, cidade onde viveu o saudoso Luis Sepúlveda, permitiram-me um conhecimento mais sólido deste país tão próximo e, ao mesmo tempo, tão longe do nosso. Mas o êxtase do enamoramento chegou com o novio espanhol. Juntos percorremos a Andaluzia de mota, viajamos por toda a Galiza, dormimos nos paradores mais emblemáticos, visitamos Madrid e Barcelona vezes sem conta… Recordo com carinho a paella dos domingos de sol onde eu era mais um membro naquela família numerosa e alegre.
O meu amor pelo país continua de boa saúde. Já a Espanha… Está doente e chora as mais de 27.000 vítimas da covid-19. Fechou-se em casa tarde e a más horas, segundo alguns. O que falhou? Onde é que erraram? Teorias não faltam, mas as certezas escasseiam. E agora de nada vale culpar Pedro Sánchez e os seus ministros. A instabilidade política tem sido uma constante nos últimos anos e a maioria da população já não acredita em nenhum governo.
As medidas aplicadas foram das mais severas do velho continente. Até há pouco tempo, só se podia sair de casa por uma razão válida: trabalho, passear o cão, ida ao supermercado, visita a um familiar que necessite ajuda. Passados quase dois meses, as pessoas estão, finalmente, autorizadas a sair de manhã (entre as 06h00 e as 10h00) ou à noite (entre as 20h00 e as 23h00). De acordo com os amigos espalhados um pouco por todo o país os verdadeiros heróis, excluindo os profissionais que estão na linha da frente no combate à pandemia, são los niños. As crianças não só demonstraram estar à altura do que lhes foi exigido como se atreveram a superar a prova com êxito, graças à sua incrível resiliência. E eu sei como deve ter sido quase impossível mantê-las em casa! Os espanhóis vivem na rua. Faça sol, vento, chuva ou neve, tenham 9 meses ou 90 anos, eles ocupam as esplanadas da Plaza Mayor, passeiam pelas avenidas, organizam jogos e tertúlias nos parques.
O isolamento não é sentido da mesma forma nas diferentes regiões e a apreensão no regresso à tão desejada normalidade também é distinta. Até porque o desconfinamento pode virar descalabro se não for realizado com prudência. Uma amiga de Cáceres disse-me: «Estou tão habituada a estar em casa que agora o que me dá medo é regressar ao trabalho».
As zonas mais afetadas pelo vírus (Madrid, País Basco, Catalunha) são também as mais ricas do país e, provavelmente, terão menos problemas em dar a volta por cima. Em contrapartida, há outras regiões que correm o risco de ficar viradas do avesso. Os amigos que vivem na Estremadura e nas ilhas Canárias e Baleares dizem que a crise mais grave não é sanitária, mas sim económica e social. O governo está tão preocupado com a situação na península que se esquece das reais dificuldades insulares. Mas já quase ninguém estranha. Como diz um amigo, «os políticos entram e saem, mas só os reis ficam».
Está previsto que os grandes hotéis abram as portas somente em novembro, altura em que os voos internacionais também serão autorizados. Até lá, como (sobre)vivem famílias inteiras que dependem do turismo? Por enquanto, graças ao ERTE (regime equivalente ao layoff em Portugal). Mas até quando? Ninguém sabe. Os espanhóis são especialistas em fazer das tripas coração para seguir adelante, sem lamentos nem choros porque vivem ao ritmo do flamenco e do reggaeton, e não do fado. A vida continua. ¡Al mal tiempo, buena cara!