Apandemia de coronavírus traçou caminho até à América do Sul, deixando para trás um rasto de devastação. O populoso Brasil já é o segundo país com mais infeções registadas, enquanto países como o Peru não estão muito melhor, tendo em conta as suas menores dimensões – o número de mortes per capita é semelhante. Contudo, nem tudo são más notícias: num continente prestes a tornar-se o epicentro da pandemia, há casos de sucesso, com o Uruguai e o Paraguai. Nestes países, o número de infeções registadas per capita é mais de 10 vezes inferior ao do Brasil – quanto a mortes, nem é comparável.
Não que a situação não possa subitamente piorar. Por exemplo, «a fronteira do Brasil como o Paraguai é bastante dinâmica e por isso deveria ser dada especial atenção para evitar a propagação da doença a partir dali», avisa ao SOL Carmen Fonseca, professora de Relações Internacionais na FCSH-NOVA e investigadora no IPRI (ver texto ao lado). «As probabilidades de ‘exportação’ da doença exigem que se tomem medidas concertadas regionalmente, começando pelas zonas fronteiriças».
No entanto, por agora, enquanto os seus vizinhos brasileiros se debatem, com sistemas de saúde a quebrar, de São Paulo ao Amazonas, o Uruguai até começou o processo de desconfinamento. Algumas escolas no interior já abriram portas, as restantes preparam-se para o fazer, no início de junho, combinando aulas virtuais com presenciais. Nas lojas da capital, Montevideo, vê-se vida de novo, contou Leonardo Silveira, um livreiro que já sentia muita falta dos seus clientes.
«As pessoas não vêm apenas para comprar livros, mas para ver-te e falar um pouco. Deixa-me muito feliz vê-los – à distância, mas juntos, aqui na loja», explicou à Reuters.
O otimismo está bem patente na imprensa uruguaia: visto de fora, até já parece estranho que a pandemia já não seja o grande destaque. Na sexta-feira de manhã, no site do La Red 21, mencionava-se apenas que um reitor de uma universidade pediu mais fundos, justificando: «Sem ciência de qualidade, poderíamos ter tido enormes problemas a enfrentar a covid-19». Já no diário uruguaio La República, os pedidos dos sindicatos dos professores para mais investimento na higiene das escolas estavam no canto da página.
Nestes jornais para encontrar notícias de fundo sobre a pandemia terá de ir à secção internacional: pode ler sobre a lenta recuperação da Europa, o caos nos EUA e a tragédia ali ao lado, no Brasil. O país já ultrapasou as 25 mil mortes por coronavírus, «mas Bolsonaro continua em negação», queixava-se o La Red 21.
‘Sob controlo’
Com apenas 811 casos por coronavírus, 22 mortos e o número de novos casos a decair sustentadamente, os 3,4 milhões de uruguaios podem ter a certeza de que o surto «está sob controlo», disse o epidemologista Julio Vignolo à France Press. O Uruguai declarou estado de emergência a 13 de março, quando a pandemia começava a agravar-se na Europa – então, tinham sido detetados apenas quatro casos.
Talvez por ter jogado na antecipação e apostado nos testes em massa – per capita, fez mais do dobro do Brasil – o Uruguai pôde dar-se ao luxo de não impôr medidas estritas de isolamento e ainda assim manter a covid-19 sob controlo. Optaram por uma «quarentena voluntária», com base em recomendações, proibindo apenas espetáculos e outros grandes eventos.
Claro que ajudaram as boas condições de vida, comparativamente ao resto do continente: boa parte dos uruguaios têm acesso a sanidade básica e a um sistema de saúde bastante sólido. No Paraguai, a história é completamente diferente. Trata-se de um país menos desenvolvido, mas que beneficiou do seu isolamento geográfico – tem poucas ligações aéreas internacionais. Contudo, também tem uma brutal desigualdade, bem como uma enorme precariedade quanto à habitação e saúde.
‘Pandemia de fome’
De facto, o Paraguai não primou quanto aos testes – o número per capita está ligeiramente abaixo do Brasil. Mas o Governo paraguaio rapidamente reconheceu as fragilidades: temiam que o número de mortos devido à covid-19 chegasse aos 15 mil.
Logo a 11 de março, quando registava umas meras cinco infeções, foi declarada uma dura quarentena. A capital, Assunção, com os seus enormes bairros de lata à beira do rio Paraguai, chegou a ser completamente isolada: ninguém entrava, ninguém saía. Hoje, entre os quase sete milhões de paraguaios, há apenas 900 casos registados de covid-19 e 11 mortes.
«Graças à sua localização geográfica e à menor conexão com o mundo, o Paraguai ficou isolado. Nesse sentido, pode ser parecido com a Bolívia: menos turismo e menor conectividade. Mas os números do Paraguai realmente surpreendem», assegurou o analista Simón Pachano, à RFI.
Pouco a pouco, começa-se a levantar restrições no Paraguai. No entanto, mantém-se outra ameaça, talvez maior que a pandemia: o medo da fome assombra o continente.
As Nações Unidas já avisaram que o número de pessoas a passar fome na América Latina poderá quadruplicar devido à pandemia, chegando aos 14 milhões. «Estamos a entrar numa muito fase complicada», disse esta semana Miguel Barreto, diretor do Programa Alimentar Mundial para a América Latina e o Caribe. «É aquilo a que chamamos pandemia de fome».