por Filipa Moreira da Cruz
Munidos com máscara ou viseira, luvas e álcool gel muitos regressam ao trabalho, nomeadamente na velha Europa. Durante longos meses a casa foi o porto seguro e nem sempre é fácil sair da zona de conforto. Aquela que serviu de escritório, escola, cinema, teatro e restaurante está desejosa de nos ver pelas costas. Outrora palco de despertares 10 minutos antes da reunião em camisa amarrotada, gravata e boxers, teletrabalho em pijama e fato de treino, leituras sem fim, discussões e reconciliações, jogos de cartas e de tabuleiro, filmes apocalípticos, aprendizagens intermináveis, gritos, birras, gargalhadas e choros. A casa volta a ser simplesmente… casa! E o resto acontece lá fora.
Ai que saudades de madrugar, dos transportes públicos apinhados, do trânsito, da poluição sonora, do cheiro a gasolina, da chuva. É que nem o tempo ajuda! Tanto calor deixa-nos de mau humor. Os seres humanos necessitam de rotinas para pautar o seu dia-a-dia. Sentem-se desamparados face à mudança. Perdem o chão quando deixam de ter o controlo. Queriam a vida de antes, não queriam? Pois aqui está ela! Layoff prolongado para alguns, despedimento coletivo para outros, regresso ao trabalho para quase todos e subsídio de desemprego para os de sempre.
Muitas PMEs não resistirão aos meses de confinamento e fecharão portas. E mesmo que o mal venha de antes faz-se batota e atribui-se a culpa à covid-19. A crise sanitária é o bode expiatório para a crise económico-social que se segue. Várias empresas e indústrias apresentam saldo negativo nos dois primeiros trimestres do ano. Quando penso nas que, eventualmente, lucraram com a pandemia só me ocorrem três: Amazon, Netflix e Zoom. Mas haverá mais, claro! A desgraça de uns faz a riqueza de outros. Tem sido assim desde que o mundo é mundo. E por que razão alguém se preocuparia em alterar o rumo das coisas? Não se muda uma equipa que ganha. E neste jogo só os mais fortes serão vencedores.
O pequeno comércio terá de ser audacioso, criativo e saber reinventar-se para resistir à crise que se desenha. Não será igual à recessão de 1929 nem ao pós Segunda Guerra porque a História tende a repetir-se, mas nunca da mesma maneira. O século XXI é único e a era digital faz com que tudo seja efémero. As multinacionais não terão problemas de consciência em despedir trabalhadores em massa e, ao mesmo tempo, exigir aos que ficam que arregacem as mangas, vistam a camisola, abdiquem das férias em agosto pelo bem de todos. Até porque mais de dois meses em casa sem fazer nada já foi um bom descanso.
Sangue, suor e lágrimas, mas só para alguns. Ao mesmo tempo que a Air France-KLM reclama uma injeção urgente de dinheiro do Estado e a reabertura das rotas internacionais o seu CEO está prestes a receber um bónus de 768 000 euros correspondente ao exercício de 2019. E não será o único. Outros seguirão o seu exemplo. Os presidentes de grupos internacionais renunciam aos seus chorudos salários, mas não aos prémios adjacentes que lhes permitem manter o mesmo nível de vida de uma forma mais subtil. E onde ficam a ética e o bom senso? Who cares?! O importante é mesmo regressar ao trabalho, custe o que custar.