Mark Chapman está farto de se ver encerrado há anos a fio. Quem diria? No ano 2000, vinte anos depois de ter assassinado John Lennon teve o descaramento de surgir perante um comité que devia apreciar o seu pedido de saída precária, A conversa durou 50 minutos: Mark tentou convencer o grupo de senhores sentado à sua frente que além de não oferecer qualquer perigo à sociedade, o próprio Lennon seria o primeiro a aconselhar a sua libertação temporária. Robert Gangi, o advogado da Correction Association of New York foi de opinião de que uma frase desse calibre só podia tratar-se de uma brincadeira estúpida. Não se limitou a votar contra a sua saída como afirmou que Chapman nunca deveria ter acesso a viver solto por poucos dias que fosse. Seria algo de politicamente inaceitável. Daqui a um mês, Mark voltará a ser escutado em nova tentativa de saída precária. Será a décima primeira.
O episódio tem-se repetido de dois em dois anos. Teimosa e ineficazmente. Fechado na Attica Correctional Facility, nos arredores de Buffalo, Nova Iorque, Chapman foi condenado a uma pena de 20 anos a perpétua. A sentença foi-lhe lida no dia 24 de agosto de 1981 pelo juiz Dennis Edward, a despeito do requerimento imposto pelo seu advogado, Jonathan Marks, para que fosse internado num hospital psiquiátrico por motivo de insanidade.
Não creiam que as contínuas recusas que obrigam Mark a estar encerrado há nada menos de 50 anos envolvem qualquer tipo de preconceito para com o mamífero que nasceu em Fort Worth, Texas, no dia 10 de maio de 1955. Chapman tem um espírito que vagueia por aqui e por ali e não tem apresentado nenhum tipo de sustentabilidade mental. Além disso, tem uma sentença de morte balouçando-se sobre a cabeça com a espada de Dâmocles, tantos são os antigos adoradores de Lennon que continuam dispostos a vingar-se e a limpar-lhe o sebo mal o apanhem a jeito. Por isso, os motivos para o manterem no cárcere, multiplicaram-se e estiveram sempre nesse limbo que mexe com a possível reação externa e com a sua própria segurança, isto a despeito de YokoOno, a viúva de John Lennon já tenha chegado a promover um Day of Freedom que o levasse até ao exterior dos muros da penitenciária.
Apesar da notoriedade do seu crime, Mark Chapman nunca quis tirar proveito dele para se promover publicamente, não se dispondo a participar nos muitos pedidos de entrevistas a que foi sujeito. Uma brecha nessa resistência fez barulho. James R. Gaines, da revista People, publicou as suas declarações em três partes diferentes, durante os meses de Fevereiro e Março de 1987. Chapman veio lamentar-se mais tarde e revelar que fora um enorme erro da sua parte. Por seu lado, em 1992, Jack Jones, um repórter do Democrat and Chronicle, trouxe a lume um livro sobre os acontecimentos de Dezembro de 1980: Let Me Take You Down: Inside the Mind of Mark David Chapman, the Man Who Killed John Lennon.
Ah. Entrar na cabeça de Mark Chapman?! Eis algo que não parece nada fácil. Talvez mesmo impossível. Ele mesmo se fechou lá dentro e deitou as chaves fora. «Let me take you down/‘Cause I’m going to strawberry fields/Nothing is real/And nothing to get hung about/Strawberry fields forever»: não, nada dentro do cérebro torcido de Chapman parece ter algo de tão agradável como campos de morangos para sempre.
The Cachter in the Rye
Que Mark também nunca tinha grande autoestima é algo que se pode provar por uma tentativa séria de suicídio datada de 1977. Fechou-se no carro, dentro da garagem, e procurou inalar gases suficientes para lhe permitirem uma viagem confortável até ao além, mas um vizinho desmancha-prazeres apanhou-o a tempo e salvou-lhe a vida. Foi internado num sanatório onde um companheiro de reclusão teve um gesto que lhe alterou a existência: emprestou-lhe um livro – The Catcher in the Rye, de J.D. Salinger. Em português já foi publicado sob dois títulos diferentes – À Espera no Centeio e Uma Agulha no Palheiro. O romance é particularmente interessante, veio a público inicialmente em 1951, e teve um sucesso razoável. Numa sinopse reduzida pode dizer-se que descreve um fim de semana da vida de um rapaz chamado Holden Caulfield que, aos dezassete anos, filho de uma família nova-iorquina de posses consideráveis, regressa a casa expulso do colégio onde estava internado por causa das várias notas negativas com que os professores o presentearam. A questão maior do desenrolar dos acontecimentos é que, antes de voltar à casa paterna, e após uma cena de pancadaria com um colega de nome Ward Strardtler, saiu do comboio em Nova Iorque e deu entrada no manhoso Hotel Edmont, dedicando-se a três dias de bebedeira e solidão entrecortada pela relação com prostitutas. Convence-se de que é um defensor de crianças perdidas e sem futuro, crianças perdidas no centeio, como ele as vê, até à hora mágica em que entende que, de facto, a criança perdida no centeio a precisar urgentemente de ajuda é ele próprio.
O livro de Salinger desarrumou o resto do caos que existia na cabeça de Chapman. Subitamente partiu para o extremo oriente. Arranjou uma namorada que trabalhava como agente de viagens, uma rapariga de ascendência japonesa, Gloria Abe, e desembrulhou uma das versões da sua esquizofrenia. Casaram-se no dia 2 de Junho de 1979.Finalmente instalou-se, seguro de que iria levar até ao fim os seus objetivos mais prementes. Ah!Coitado do infeliz Mark. Passou a ouvir vozes a torto e a direito. Desenvolveu uma série de obsessões incontroláveis e caiu na indigência. No mês de setembro de 1980, escreveu algumas cartas a uma das sua amigas favoritas, uma tal de Lynda Irish, todas assinadas The Catcher in the Rye. Numa delas sublinhou a frase: «I’m going nuts!»
Gritos de mãe
O grande problema destes trastes que resolvem ficar tolos é que não se limitam a ficar tolos para os parentes e para os vizinhos mais próximos. De um momento para o outro passam a ser suficientemente tolos para incomodarem o mundo em geral. Foi o que aconteceu com Chapman, o bandalho de Fort Worth. Filho mais velho de um brutamontes, David Curtis Chapman, sargento da Força Aérea Americana, e de uma enfermeira chamada Diane Elizabeth Peace, Mark habituou-se desde muito jovem a ver o pai dar cargas de pancada na mãe, daquelas de arrancar a pele a um rinoceronte. «Acordava a meio da noite com os gritos da minha mãe pedindo ajuda», contou mais tarde a um dos seus psiquiatras. «Queria sair da cama, mas era como se estivesse paralisado. Não podia fazer nada por ela».
Aceitemos que este tipo de animais são geralmente fruto de ambientes familiares violentos. Não lhes desculpa os crimes posteriores, não lhes serve de perdão, mas é como se justificassem a sua realidade de bestas. Não perdeu grande tempo da sua adolescência a dedicar-se ao consumo de drogas e a apaixonar-se pela música dos Beatles. Aprendeu a tocar guitarra mal e porcamente. Mas era insistente. Passava os meses a trocar de emprego, não por vontade, mas porque era despedido a torto e a direito. Tinha um feitio insuportável. O que não inviabilizou uma relação forte com Jessica Blankenship. Mais uma carga de trabalhos. O seu raciocínio pouco elaborado fez dessa relação extra matrimonial um poço de autoculpabilização do qual drenava todas as formas de ressentimento que o empurraram para o precipício de nova depressão terrível. Incompatibilizou-se com quase todos os parentes mais próximos, sobretudo com o pai e com a mãe. Vamos e venhamos: Mark Chapman era um destroço humano à deriva numa sociedade que não tinha tempo nem paciência para o absorver. E ele também não fazia o mais pequeno esforço para recuperar a sua sanidade. Estavam criadas as condições para que algo de muito mau acontecesse. Era questão de saber qual o dia certo. Ou, para sermos corretos, qual o dia errado…
A pouco e pouco, a ideia foi-se fermentando na sua cabeça estupidificada: tinha de matar John Lennon! Mas, que diacho?, porquê John Lennon, logo um tipo que não fazia mal a uma mosca, às voltas com os seus amores e desamores com a namorada japonesa Yoko Ono? Mark andava às avessas com Lennon desde que este, em 1966, numa digressão dos Beatles pelos Estados Unidos, tinha resolvido largar aquela frase iconoclasta que o mundo não esqueceu:«We’re more popular than Jesus!»
Umas das boas amigas de Chapman, se é que este algum dia teve alguma, veio a público afirmar, já depois do crime. «Mark seemed really angry toward Lennon and spoke frequently about Lennon’s claim, saying it was blasphemy». Ora, tubérculos! Se isso é lá motivo para disparar cinco balas contra o desbocado que resolveu dizer uma piada à qual uns milhões de pessoas não acharam muita graça! Ainda por cima, depois de terem decorrido catorze anos.
Chapman e a sua grupeta de de músicos desafinados começaram por alimentar a raiva através de uma versão de Imagine sem particular criatividade: «Imagine, imagine if John Lennon was dead…» Em seguida o assunto tornou-se mais revoltante, no aspeto social, se assim o quisermos considerar. Mark passava a vida a dizer mal de Lennon pelo facto de este pregar por uma vida despojada e, mesmo assim, viver rodeado de milhões e milhões de dólares. O cretino podia não ser nenhum Marx, mas desenlvolveu rancores sociais, mais uma acha para a fogueira que ardia no interior do seu crânio infetado. Ao ponto de a luz se apagar. E foi Chapman que escreveu pelo seu próprio punho como é que isso aconteceu: «I would listen to this music and I would get angry at him, for saying God, when he didn’t believe in God, that he just believed in him and Yoko, and that he didn’t believe in the Beatles. This was another thing that angered me, even though this record had been done at least ten years previously. I just wanted to scream out loud, “Who does he think he is, saying these things about God and heaven and the Beatles?” Saying that he doesn’t believe in Jesus and things like that. At that point, my mind was going through a total blackness of anger and rage».
Uma total escuridão de raiva obnubliou Mark Chapman. Na manhã do dia 8 de Dezembro de 1980, abandonou o seu quarto do Hotel Sheraton, deixando toda a bagagem para trás. Parou numa livraria, comprou um exemplar de The Catcher in the Rye e escreveu na primeira página: «This is my stateman», assinando Holden Caulfield. Depois passou horas a rondar a porta do Dakota Building, onde vivia Lennon. A meio da manhã, cruzou-se com a empregada de John e com o filho deste, Sean. Fez-lhe uma festa na cara e repetiu as palavras do ex-Beatle na canção que lhe dedicara: «Beautiful boy!». Às 5 horas da tarde, John e Yoko saíram para uma sessão de gravações marcada no Record Plant Studios. Foi a altura ideal para Mark. Aproximou-se de Lennon e suplicou-lhe que assinasse a capa do álbum Double Fantasy. Um fotógrafo amador, Paul Goresh, estava a poucos metros de distância e fixou essa imagem de assassino e sua vítima para todo o sempre.
Mark Chapman manteve-se no seu posto pelas horas que se seguiram.
Viu John e Yoko partirem na sua limusina privada e viu-os regressarem cerca das 10h50 da noite. A sua obsessão martelara-lhe os pensamentos horas e horas sem descanso. Era um animal acossado, como se perdido no centeio. O casal passou por ele e caminhou até à entrada do edifício. Mark puxou da arma que trazia no bolso, um revolver especial de calibre 38. Sussurou: «Hey, Mr. Lennon…» John não o ouviu. Disparou-lhe nas costas cinco balas de pontas cortadas, uma delas perfurando-lhe o ombro e encaixando-se na artéria sub-claviana. Depois afastou-se calmamente para o lado e dedicou-se à leitura de determinadas passagens de The Catcher in the Rye. Foi nessa pose que a Polícia Criminal do Departamento de Nova Iorque o encontrou quando chegou ao local do crime. John estava à beira da morte. Transportado de imediato para o Roosevelt Hospital, chegou lá já sem vida. Chapman foi conduzido para interrogatório. Estava tão sereno que dir-se-ia que nada tinha sucedido. Depois limitou-se a deixar uma frase fantasmagórica para quem tivesse a paciência de o entender: «I’m sure the big part of me is Holden Caulfield, who is the main person in the book. The small part of me must be the Devil».