Com o conflito em Cabo Delgado, a província mais a norte de Moçambique, vem uma maré humana, desesperado por escapar das suas aldeias devastadas, dos ataques de jihadistas, da brutalidade dos militares e mercenários que os combatem. Dos mais de 200 mil deslocados, muitos fugiram para a capital da província, Pemba, outros foram ainda mais longe, para Niassa, Nampula ou até à Zambézia, a sul. São recebidos em campos lotados ou em casas a abarrotar, ideais para o alastrar da pandemia. Aliás, Nampula foi declarada a primeira região do país com contágio comunitário de covid-19.
«Estão a fugir da guerra, mas há outra guerra, que é contra a covid. E as pessoas dizem claramente: ‘Essa não é a nossa prioridade. A nossa prioridade é salvarmo-nos dos tiros’», explica ao SOL Armando Nhantumbo, do semanário moçambicano Savana. Nos campos de Metuge, a cerca 40 km de Pemba, encontrou umas 20 mil pessoas, refugiadas em cinco acampamentos: falta saneamento básico, comida, um cobertor para enfrentar o frio terrível do inverno em Moçambique. Aí, a regra é uma tenda grande para cada duas famílias.
«Falamos de agregados que vão até dez pessoas. Significa que uma tenda pode acolher até vinte pessoas», nota o jornalista. Foram montados alguns pontos de água, para lavar as mãos com sabão, e distribuídas máscaras, mesmo que não cheguem para todos. Já se fazem alguns testes, mas têm de ser enviados para o laboratório na Beira, no centro do país. Falamos de uma viagem de mais de 18 horas de carro, percorrendo uma distância mais de quatro vezes superior à entre Lisboa e o Porto.
Mesmo que se abra um laboratório no norte, como prometem as autoridades moçambicanas, «como é que dizes a vinte pessoas apinhadas numa tenda para manter distanciamento social?», questiona Nhantumbo.
Até quem consegue escapar aos campos, ficando em casa de familiares ou de gente solidária, não encontra condições muito melhores. «Trata-se de atender as pessoas, não tem como dizer: ‘Olha, não podemos te acolher porque temos de manter distanciamento’», diz ao SOL o bispo de Pemba, Dom Luiz Fernado Lisboa. «Quase que cada família está a acolher outra família. É comum encontrar famílias de seis ou sete elementos que agora têm 15, 20, 25 pessoas em casa».
«Tem sido uma lição para todos nós, de solidariedade, amor, humanidade, estas famílias pobres acolhendo outras famílias pobres», relata o sacerdote brasileiro, orgulhoso. No entanto, «a situação piora a cada momento. Essas famílias deram tudo o que tinham. Gastaram toda a sua comida, todo o seu dinheiro. Querem continuar acolhendo, mas muitas vezes não têm essa possibilidade».
Antes da insurreição e da pandemia o trabalho escasseava, agora é pior. E maio, a maior confederação patronal de Moçambique, citada pela Lusa, avisou que 26 mil empregos estavam em risco, sobretudo em Cabo Delgado. Milhares de pescadores já fugiram de Mocímboa da Praia, Macomia e Ibo, as regiões de maior produção pesqueira, arriscando uma escassez alimentar.
‘Vontade de viver’
«É uma situação dramática. As pessoas deixaram tudo para trás, as suas casas foram incendiadas. São pessoas que ficaram três, quatros dias na mata, a fugir dos ataques, perderam os seus entes queridos», lamenta Nhantumbo. Muitos só trouxeram consigo as roupas que tinham no corpo, bem como histórias do terror que se vive no norte de Cabo Delgado.
São muitos traumas e pouco apoio psicológico, assegura Dom Luiz. «Há um tempo, chegaram aqui a Pemba dezenas de crianças, que se perderam da família. Se juntaram no mato e umas foram ajudando as outras, chegaram cá», conta. «Nós fomos lá acolher essas crianças. Vimos no rosto delas o cansaço, o medo, sabe? A angústia de deixar para trás os pais, não saberem onde estão. Houve um menino de 15 anos que andou no mato dois dias, com o irmãozinho de dois anos às costas».
Este não é a única tragédia que marcou o sacerdote. «Uma jovenzinha grávida deu à luz enquanto fugia, no meio do mato», recorda. «Imagina o que é isso. Se pensarmos nas pessoas que têm uma condição de vida boa, com todo um aparato, ajuda na hora do parto, quando ele acontece no hospital… Agora imagina uma jovem, sem experiência, a dar à luz no mato, ter de apanhar o seu bebé e continuar a fugir», nota. «É muito triste. Há muitas histórias como essa, muitas outras, que deixam uma pessoa assim… Admirada de ver a força dessa gente, essa vontade de viver, essa luta».
Área proibida
É difícil saber o que se passa no norte de Cabo Delgado, onde grupos jihadistas – antigamente conhecidos como Al Shabaab, pela semelhança com os terroristas da Somália – declararam lealdade ao Estado Islâmico. De vez em quando, os militares anunciam a destruição de bases insurgentes, como aconteceu esta semana, segundo a Lusa. Ou sabemos de algum massacre sanguinário, como a decapitação de 15 chefes de família, em Macomia e Meluco, avançou o Voice of America, após o rapto de dez raparigas de Mocimboa da Praia. Contudo, no geral, o que se passa na região continua envolto em secretismo.
«Desta vez não fui até ao coração do conflito, também porque é uma área praticamente proibida para jornalistas nesta fase», contou Nhantumbo. «Neste momento em que estamos a falar, temos um colega que está desaparecido já vão dois meses. E quando desapareceu mandou um sms para um colega, a dizer que estava cercado por militares», exemplifica o repórter, referindo-se a Ibrahimo Abu Mbaruco, da Rádio Comunitária de Palma, na ponta norte da província.
O próprio Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, reconheceu que podem ter havido «violações involutárias» dos direito humanos pelas autoridades, resultado das «medidas robustas» contra a insurreição. Mas o paradeiro de Mbaruco continua desconhecido.
‘Com a chegada da empresa é só sofrimento’
Debaixo do chão de Cabo Delgado há petróleo, gás, rubis. Mas há muito o que esta bênção se transformou numa maldição para as populações. Muitos tinham as suas casas e machambas, ou quintas de subsistência, em cima de riquíssimas reservas minerais.
«Antigamente vivíamos bem, mas com a chegada de empresa é só sofrimento. Para cá vieram brancos que nos estão a maltratar. Arrancaram-nos as machambas e queimaram-nos as casas», contou António Ali, um habitante de Namanhumbir, no centro de Cabo Delgado. Já ia a caminho dos 100 anos quando falou com Nhantumbo, para um artigo do Savana, em 2017, premiado pela União Europeia.
O sofrimento do velho Ali, expulso das suas terras pela Montepuez Minning Lda – à época 75% propriedade de uma empresa britânica e 25% propriedade do general Raimundo Pachinuapa, influente membro da Frelimo – não é um caso isolado. Multinacionais como a Montepuez Minning Lda, que chegou a ganhar 71,5 milhões de dólares num único leilão de rubis, em Singapura, em 2019, raramente hesitam em usar as ligações às forças armadas, ou as suas forças de segurança privadas, para ter acesso às concessões.
Há poucas dúvidas quanto à relação entre o descontentamento da população e o crescimento de grupos jihadistas em Cabo Delgado, cuja insurreição explodiu em 2017. É que «está-se sempre a descobrir recursos, em processos não transparentes, que são entregues a estas empresas», explica Nhantumbo.
«Nos últimos anos gerou-se tanta expectativa. As pessoas ouviam sempre falar, recursos aqui, recursos ali. No imaginário ficou a ideia de que iam ficar ricos! Mas não estão a ficar ricos, antes pelo contrário, estão a ficar mais pobres ainda», conta. «As pessoas dizem, ‘levem o gás, levem o ouro, levem os rubis, mas pelo menos nos deixem as machambas, as casas’».
Entretanto, continua a construção do maior projeto de gás liquefeito em África, liderado pela francesa Total, na península de Afungi. Apesar da insurreição, o projeto «está muito próximo do cronograma inicial», terminando em 2024, garantiu esta semana Carlos Zacarias, líder da entidade reguladora do setor, à Lusa. As multinacionais contam com a proteção de mercenários russos e sul-africanos que dão a cobertura aérea que falta às tropas moçambicanas, executando também as funções de tropas especiais.
Importa lembrar que a Total está no centro das acusações de usurpação de terras. No relatório «do Eldorado do gás ao caos», divulgado esta semana, por ambientalistas franceses, lê-se que os bancos BNP Paribas, Société Générale e o Crédit Agricole, junto com a Total, «são alguns dos maiores beneficiários dos impactos devastadores da indústria na província de Cabo Delgado». N a disputa pelas reservas de gás da região, avaliadas nuns astronómicos 60 mil milhões de dólares, terão sido pagos subornos, feitas negociatas de armamento francês e aumentada ainda mais a dívida moçambicana.
«Os principais operadores até pagaram ao Governo de Moçambique para mobilizar mais tropas para os proteger. Nada se faz para atacar as motivações políticas e sociais do conflito e arrancar o mal pela raiz», acusam os ambientalistas.
Vulneráveis
De facto, a população viu pouco dos lucros que vêm da sua terra. «Quando chegas encontra jovens com uma condição de vida degrada, sem perspetiva, sem escola, sem hospital próximo, com um atendimento razoável. Esses jovens claramente que estão vulneráveis a ser aliciados», garante Nhantumbo. «Não só por este grupo que está a fazer ataques. Se eu chegar a ali com mil meticais, cinco mil meticais, e mobilizar as pessoas para uma qualquer agenda minha, elas estarão disponíveis».
Não ajudam as clivagens étnicas em Cabo Delgado, entre muânis, que habitam a costa e são maioritariamente muçulmanos, e os macondes, sobretudo cristãos, que vivem no interior. Os muanis, historicamente marginalizados, servem de carne para canhão para os jihadistas; já os macondes ganharam destaque na guerra da independência – o primeiro tiro foi disparado por Alberto Chipande, um maconde, como Nyusi. Hoje, compõem boa parte da elite da Frelimo.
«São pessoas que tiveram um lugar privilegiado na história, antigos combatentes que hoje têm pensões. Já os muanis, o seu papel no processo de libertação foi abafado», explica Nhantumbo
«Em Cabo Delgado, durante muito tempo, o Estado esteve ausente», salienta. «Apareceu nos últimos anos, não como prestador de serviços. Apareceu com a imagem de um Estado corrupto, interessado na exploração dos ricos recursos da província, que não resolve os problemas da população».
«Quando aparecem grupos a distribuir alimentos à comunidade, a dizer: ‘Nós conseguimos confrontar este Estado que só trás problemas, que quer a expropriar terras para entregar às grandes multinacionais, com reassentamentos sem compensação’… Esses insurgentes aparecem como messias», teme o repórter.