‘Não é crime’, pode ser legal, mas não é ético

No seu jeito muito peculiar de dicotomizar redutoramente os assuntos, o primeiro-ministro apressou-se a reagir às críticas, perguntando se «Mário Centeno cometeu algum crime?» (curioso o pretérito do verbo).

«A olhar a mentira dos salões esquecemos a verdade das celas»
Miguel Torga

Mário Centeno foi um ministro das Finanças com inegáveis resultados positivos. Poderíamos discutir alguns dos meios que escolheu para alcançar tais resultados, mas deve reconhecer-se o seu bom trabalho, com competência e sensatez (qualidade hoje tão escassa na política portuguesa).

A sua saída de Governo não é, por isso, uma boa notícia. Mas a sua mais que provável transumância direta para governador do Banco de Portugal será um momento institucionalmente desolador. Não está em causa – repito – a sua capacidade para o lugar, como é óbvio. Para esta nomeação tão importante tratando-se da autoridade regulatória mais decisiva do país, se a competência e experiência são critérios absolutamente necessários, não são, todavia, suficientes. 

No seu jeito muito peculiar de dicotomizar redutoramente os assuntos, o primeiro-ministro apressou-se a reagir às críticas, perguntando se «Mário Centeno cometeu algum crime?» (curioso o pretérito do verbo). Se fosse crime, não iria; não é crime, pode ir. Ou seja, António Costa, que até é jurista, acha que basta ser legal para se cumprirem todas as condições. Melhor até, basta apenas não constituir crime! O plano ético, mesmo que não suportado por qualquer lei, parece aqui ser adjacente. Acontece que, em qualquer domínio e sobremaneira na coisa pública da República, a separação não é tão-só entre a legalidade e a ilegalidade, mas também entre a legitimidade ou falta dela. Por isso e bem, a norma jurídica abstrata vai absorvendo cada vez mais requisitos e exigências éticas. A consciência de uma pessoa eticamente justa é mais exigente do que o produto de um avisado legislador, porque a lei não esgota a ética e é, somente o seu limite inferior. Assim sendo, a lei deve ter sempre subjacente um mais escrupuloso contrato moral.
Nem tudo o que a lei permite se nos deve impor, e há coisas que a lei não determina, mas que se nos devem impor.

Todavia, é visível na sociedade contemporânea a relativização da abordagem ética, escorada num qualquer e manipulável contexto ou circunstância. Para tal, inventou-se a ética adversativa ou condicional associada a um qualquer ‘se’, ‘mas’, ‘talvez’, ‘quase sempre’, ‘salvo se’, ou outras expressões de escapatória ética a la carte. 

Ora, na situação em apreço, não é (eticamente) aceitável a passagem direta de um ministro das Finanças para Governador do banco central. Disse o Governo (e o Presidente da República, no seu irreprimível impulso de dar opinião antes de decisões, que neste caso nem sequer lhe pertencem) que já houve transferências semelhantes desde os tempos da Monarquia Constitucional, como se o mal de ontem abençoasse como ‘normal’ semelhante prática hoje. Argumento muito português e quase infantil (’fizeram assim, por isso também posso fazer assim’). Os chamados ‘períodos de nojo’ não são apenas os que a lei regula, mas os que a consciência impõe, sob pena de o nojo ser outro. 

Entre muitos outros aspetos, importa aqui diferenciar a comparação com o passado, que o Governo e o Presidente fizeram. É que, agora, os bancos centrais são completamente independentes do poder político, ao contrário da relação de dependência que vigorava antes. Estamos inseridos numa União Monetária com um Sistema Europeu de Bancos Centrais, encabeçado pelo Banco Central Europeu (BCE), e de que os bancos centrais de cada Estado-membro são parte integrante. 

Basta atentar no que dispõem os Tratados Europeus: «O BCE, os bancos centrais nacionais ou qualquer membro dos respetivos órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, dos Governos dos Estados-Membros ou de qualquer outra entidade. As instituições, órgãos ou organismos da União, bem como os Governos dos Estados-Membros, comprometem-se a respeitar este princípio e a não procurar influenciar os membros dos órgãos de decisão do BCE ou dos bancos centrais nacionais no exercício das suas funções».

No contexto da União Europeia e do próprio BCE, creio que se reconhece como indesejável uma decisão destas, do ponto de vista de prática política e institucional. Não é propriamente uma fotografia que distinga positivamente Portugal.  Dir-se-á que não é a primeira vez (já se verificou na Eslováquia), mas só o próprio facto de se citar este anterior caso é a prova de que é considerado estranho e inconveniente. 

Imaginemos a relação institucional que pode vir a acontecer brevemente entre um ministro que teve um secretário de Estado durante cinco anos, o qual, empossado novo ministro, propõe, logo de enfiada, em Conselho de Ministros que o seu ex-ministro vá para governador do banco central.  Com duas adendas: a notável e ‘feliz’ coincidência do tempo da saída do ministro e da vacatura do lugar de governador e a certeza de que o ex-subordinado do ex-ministro o proporá para essa nova função (será que Centeno teria saído das Finanças, num momento destes tão difícil, se apenas tivesse à disposição o seu lugar de quadro do Banco de Portugal e não a segurança de vir a ser o governador?). Enfim, uma espécie de nomeações em modo de pescadinha de rabo na boca. Que fique claro que não se trata de julgar a relação pessoal entre duas pessoas inegavelmente idóneas, mas a de referir fatores que, em tese, podem causar situações complexas, não completamente desligadas das anteriores funções (por exemplo, decisões sobre alienações e resoluções de bancos e sobre a gestão do Fundo de Resolução), bem como conflitos objetivos e institucionais supervenientes ou resultantes de decisões do ministro depois governador. Será que alguém poderá assegurar que isso nunca virá a suceder? Quantas casos acontecem de um começo radiante que desemboca numa relação de enorme tensão e desgaste. E será que o Conselho de Auditoria do Banco de Portugal (um Conselho Fiscal com funções mais amplas), nomeado, de acordo com a lei, pelo ministro Centeno se sentirá confortável e completamente independente para fiscalizar e auditar a ação do seu novo governador que lá os colocou, assim se violando objetivamente uma regra fundamental de independência entre auditor e auditado?

P.S. Pior que o soneto, só a emenda. Refiro-me ao projeto de lei, com fotografia acoplada, que proíbe esta transferência (já que a ética não basta), ora em andamento na Assembleia da República. 

António Bagão Félix, economista