A Guerra Fria foi um conflito pela hegemonia mundial em que, claramente, havia um fundo político-ideológico e o instrumento principal era o poder militar. Este funcionou essencialmente como dissuasor, sobretudo a partir do momento em que os Soviéticos, graças à colaboração de uma rede de espiões (incluindo cidadãos americanos que traíam o seu país como o casal Rosenberg), tiveram acesso a armas nucleares. Dissuasão militar, espionagem, propaganda, guerra secreta, foram as armas da competição. Os modelos económicos – socialismo estatal e capitalismo de mercado – também contaram, mas aqui, a superioridade das economias ocidentais era indiscutível.
Quanto à política, embora o Ocidente gostasse de fazer a contraposição democracia liberal versus totalitarismo comunista – nem todos os regimes “ocidentais” eram democráticos; para conter o comunismo, sobretudo nas áreas latino-americanas e africanas, Washington tolerou e apoiou regimes autoritários e até ditatoriais. Esta Guerra Fria acabou por decidir-se quando as reformas liberalizantes de Gorbachev feriram de morte o sistema soviético, ao retirar-lhes a tutela do medo.
O conflito com a China tem uma natureza totalmente diversa. Enquanto havia no campo militar um certo equilíbrio entre soviéticos e americanos, nada de semelhante acontece entre americanos e chineses, quer em termos nucleares, quer convencionais. A supremacia americana é enorme. Além disso, os dois campos da outra Guerra Fria alinhavam blocos de aliados: os Estados Unidos uma cadeia de Alianças regionais que funcionavam na contenção a Moscovo, os Soviéticos, o Pacto de Varsóvia, aliados bilaterais em vários continentes e uma rede de influência e controlo formada pelos partidos comunistas de todo o mundo.
Esta rede de partidos – muitos deles legais na Europa Ocidental e nas Américas, outros clandestinos e alguns até em guerrilhas – proclamavam uma ideologia comunista que pretendiam espalhar por todo o mundo. Resistir, por meios partidários nas democracias, ou recorrendo a meios autoritários nos outros casos, era o modo de luta na Guerra Fria contra a União Soviética e os seus dependentes e clientes.
A memória do que fica acima e a sua comparação com a natureza e o comportamento do estado comunista chinês basta para perceber as diferenças quando, em relação ao novo quadro internacional, se volta a falar em “Guerra Fria”.
Primeiro, Pequim não se assume como porta-voz ou porta-bandeira de uma nova ideologia – o comunismo ou socialismo chineses – que queira impor ao resto do mundo. O regime chinês é, como é natural num Estado antigo que, nos tempos modernos – nos séculos XIX e XX – foi objecto de várias acções e humilhações do exterior, especialmente da parte dos Ingleses (guerras do Ópio) e dos Japoneses (invasão nos anos 30 do século passado.
Depois, economicamente falando, o regime chinês é um capitalismo dirigido, em que o Estado, embora permitindo empresas privadas e o funcionamento dos mercados, mantém uma férrea autoridade sobre a grande estratégia, sobretudo no investimento e no comércio internacional.
Quanto a esta “guerra fria”, as armas são, até agora, essencialmente económico-financeiras. A partir das reformas liberalizantes de Deng Xiaoping, da globalização pós-Guerra Fria e da entrada a China na Organização Internacional do Comércio, graças aos grandes superavits da balança comercial e ao relativo desinteresse dos Ocidentais por certos continentes, como o continente africano, os Chineses lançaram uma vastíssima e ordenada operação de aquisições, usando os seus excessos de liquidez para adquirir empresas – algumas estratégicas – por toda a parte.
Para além de inundarem o mundo com os seus produtos baratos, foram adquirindo desde títulos do Tesouro dos Estados Unidos, até maiorias em Bancos e empresas estratégicas na Europa (como o BCP e a REN em Portugal). Sem falar das aquisições ou dos créditos sobre Estados e companhias da América Latina e da África.
Com isto, criaram duas vantagens para a futura “Guerra Fria”: maiorias de controle em zonas muito importantes da economia mundial com meios de pressão sobre governos e Estados. E ainda, lobbies naturais, de altas personalidades e dirigentes empresariais na Europa, nas Américas, na África.
Até agora, de um modo geral, não se valeram destes meios para pressões políticas. Mas, com a crise da Covid-19, viu-se a sua influência no modo como organizações multilaterais como a OMS têm actuado. Por outro lado, organizações europeias, que inicialmente tinham reagido às culpas de Pequim na origem e no silenciamento da Pandemia, alteraram os seus comunicados finais perante as pressões da diplomacia chinesa. Essa influência na política e na opinião está trabalhada de modo soft e discreto, no recrutamento muito hábil para órgãos de gestão corrente ou conselhos consultivos de empresas estratégicas, como modo de, em vários países europeus, colocar nessas estruturas, a par de quadros tecnocráticos, políticos que cobrem o leque dos arcos governamentais dos países.
É este o dispositivo económico-opinativo da influência que, pacientemente, Pequim foi criando nestes últimos dez anos, e com o qual espera contar em caso de choque com os americanos, numa nova Guerra Fria.