Brejos da Carregueira de Baixo é hoje um beco sem saída, onde só resta dar meia volta e regressar para trás. O lugar, na Herdade da Comporta, a histórica propriedade da família Espírito Santo, foi fatiado e vendido a milionários franceses e ingleses, que conseguiram da empresa a instalação de vedações de madeira (com códigos) que cortam o acesso às estradas de terra batida que no verão levavam, diariamente, centenas de turistas à praia selvagem dos Brejos – um pedaço de areia e mar com quase três quilómetros, entre as praias da Comporta e do Carvalhal, que ficou exclusiva para quem pode habitar nas moradias de luxo, entre dunas e arrozais.
Os únicos dois restaurantes locais – o O Gervásio e o Glória –, negócios de gente da terra, nascida e criada, apanharam boleia da pandemia, e nestas condições, restando apenas pó e silêncio, preferiram cerrar portas definitivamente. «Para quê voltar a abrir?», pergunta-nos Glória Pereira, ou Ti Glória, como é carinhosamente tratada, dona de 74 anos de vida e do restaurante que lhe deu o nome, situado na casa onde sempre viveu, hoje com o marido, e antes com os seus pais e os seus sete irmãos. «Agora, não vem para aqui ninguém. As estradas foram todas fechadas, por isso, as pessoas chegam, não têm por onde passar, e dão logo meia volta», lamenta. Chegar à praia não é impossível, pois não há muros que possam cobrir toda a linha de costa, mas é preciso «deixar aí o carro» e depois caminhar pelos campos «uns bons 30 ou 35 minutos». «É claro que ninguém faz isso», diz a Ti Glória. E as pessoas começaram a optar por alternativas, como as praias do Carvalhal ou do Pego, mesmo ali ao lado, e com estacionamento quase à beira mar. O turismo de massas acabou em Brejos da Carregueira de Baixo, ficando reservado a quem tem capacidade financeira para comprar ou arrendar uma propriedade, com preços a partir dos 500 mil euros (para lotes) e dois milhões de euros (para moradias), neste momento.
A estratégia de negócio da Herdade da Comporta não estipulou apenas o tipo de turismo, ou o acesso à praia. Alterou mesmo, por completo, a vida de quem vivia (ou vive) na aldeia, mesmo a de quem nunca tinha dado o nome de lar a qualquer outro lugar. «Sabe quantos cá vivem, dos que são mesmo daqui? Uma, duas, três, quatro famílias», enumera a Ti Glória, apontando a cada vez com o indicador na direção das respetivas casas. «São dez pessoas, no máximo, de resto foi toda a gente embora. E eu também vou!», afirma com decisão e entusiasmo.
A novidade não surpreende naquele contexto. E é simples de explicar: «Desde que a Herdade da Comporta loteou os terrenos que tentamos chegar a um acordo, em relação a esta casa. Passaram-se muitos anos, foi tudo muito difícil, mas chegamos finalmente a um acordo no início do ano. Paguei-lhes um valor, nada de especial, uma coisa simbólica, e assinei a escritura no dia 17 de março. Agora, quero legalizar tudo, faltam-me só aí umas coisas, para depois vender e sair daqui de vez».
O desfecho é sempre o mesmo, e com a mudança dar-se-á, muito provavelmente, lugar a outro lote, a outra moradia e a outra venda milionária. Algo visto como inevitável, e comum. Foi assim com todos os naturais e antigos residentes de Brejos da Carregueira de Baixo, ao longo das últimas décadas. E parece ser ainda assim, também, mesmo para quem tem de recomeçar tudo de novo aos 74 anos – na sequência de um processo de transformação demográfica imparável definido por critérios imobiliários, lotes, vedações, câmaras de vigilância e seguranças, combatido por um simples e resignado encolher de ombros da Ti Glória.
A conversa é, por vezes, interrompida pelo vai e vem de carros envoltos numa nuvem de poeira, mas capazes de cruzar o silêncio, o calor e as vedações, depois de digitados os códigos. Os que chegam, entretanto, acomodaram-se para lá da vedação. «São quase todos estrangeiros, ingleses e franceses. E depois ainda há pessoas dos Espírito Santo. Antes ainda vinham aqui, de vez em quando, mas agora pouco ou nada param aqui. Têm as suas vidas, e quase nunca se veem», diz a Ti Glória.
Contactados pelo SOL, a Herdade da Comporta e a Câmara de Grândola, da CDU, não responderam até ao fecho da edição sobre a opção de terem sido colocadas vedações que limitam o acesso à praia dos Brejos, e à inexistência de uma alternativa para o público em geral.
O adeus aos ‘pobrezinhos’
Brejos da Carregueira de Baixo saltou para a ribalta em 2013, quando Cristina Espírito Santo fez estalar a polémica (e a discussão) com uma descrição do lugar, na comunicação social: «Vive-se ali em estado mais puro. É como brincar aos pobrezinhos». Era, na altura, o paraíso hippie-chique nacional.
Apenas dois anos depois, o Grupo Espírito Santo colapsava e a família, que detinha a propriedade com cerca de 13 mil hectares desde 1955 – à exceção do período entre 1975 e 1989, aquando da sua nacionalização –, via-se forçada a vender uma das suas joias da coroa. O negócio ficou somente concluído em novembro do ano passado, quando a Herdade da Comporta foi comprada pela Amorim Luxury (de Paula Amorim) e da Vanguard Properties (empresa imobiliária de Claude Berda), por 157,5 milhões de euros.
A aldeia de Brejos da Carregueira de Baixo já foi destino de férias de Madonna, Angelina Jolie, Rania da Jordânia, Nicolas Sarkozy, Carla Bruni, Philippe Starck ou Christian Louboutin, entre outras figuras públicas – e é exatamente a aposta neste mercado que tem contribuído para que a Herdade da Comporta se venha a fechar sobre si mesma. E agora, já não há ‘pobrezinhos’ com quem brincar.