Há muito que Juan Carlos, antigo Rei de Espanha, está num banho-maria de sucessivas acusações de corrupção, tendo abdicado do trono em 2014. Esta semana vieram a lume documentos de 2008, do banco suíço do antigo Rei, o Mirabaud, que descrevem uma soma de 100 milhões de dólares (na altura, equivalente a quase 65 milhões de euros), enviada pelo Rei Abdullah al-Saud, falecido em 2015, a Juan Carlos, como uma «prenda segundo a tradição saudita», segundo o El Español. Já o El País avançou que a Justiça suíça está a investigar uma transferência de 3,5 milhões de euros de uma conta do Rei emérito para as Bahamas, um conhecido paraíso fiscal. Faz parte de uma série de investigações a indivíduos ligados a Juan Carlos, que desfrutava de imunidade para crimes cometidos até abdicar do trono, mas não depois disso.
Ligando todas estas transferências estão alegados testas de ferro de Juan Carlos. O dinheiro que partiu para as Bahamas entrou na conta do advogado Dante Canónica e saiu da Fundação Lucum, sediada no Panamá, que tinha o antigo Rei espanhol como principal beneficiário – era administrada pelo próprio Canónica, em conjunto com o gestor Arturo Fasana. Fasana, por sua vez, é investigado pelas autoridades suíças por suspeita de lavagem de dinheiro, em conjunto com a ex-amante de Juan Carlos, a alemã Corinna Larsen. O caso é relativo à «prenda segundo a tradição saudita» – suspeita de ser parte de um pagamento ilícito a Juan Carlos, parte do seu alegado envolvimento no escândalo do TGV do deserto.
O projeto em questão fazia parte de um gigantesco esforço saudita, iniciado em 2004, para reforçar as suas infraestruturas. Passava pela distribuição de água e eletricidade, até à renovação de rede de telecomunicações e de transportes, com megaprojetos como o metro de Riade ou a linha de alta velocidade Haramain, o chamado TGV do deserto, que ligaria as cidades santas de Meca e Medina.
Na feroz competição pela concessão destes projetos, as construtoras espanholas contavam com os préstimos de Corinna Larsen, por um lado, bem como de Shahpari Zanganeh, uma figura conhecida do jet-set de Marbella. Era a terceira mulher de Adnan Khashoggi, um magnata saudita, vendedor de armas e amigo pessoal de Juan Carlos, revelou o jornal espanhol Público.
O grande trunfo das duas parece ser a sua relação privilegiada com o então Rei espanhol, que chegou a visitar a Arábia Saudita em abril de 2006, acompanhado de empresários espanhóis, incluindo das construtoras Indra e OHL – anos depois, estavam entre as que ganharam a concessão do TGV do deserto.
Pelo meio, a OHL pagou uma comissão de 95,78 milhões de euros a Zanganeh, que um mês antes da visita de Juan Carlos se reuniu com príncipe saudita Bin Abdul Aziz, então ministro da Defesa, levando uma carta em que o Rei espanhol a descrevia como uma «pessoa de confiança», verificou a procuradoria anticorrupção espanhola, segundo o El Confidencial.
Entretanto, já Juan Carlos recebera a sua «prenda segundo a tradição saudita», numa conta aberta menos de 48 horas horas antes. O dinheiro terá vindo diretamente do Ministério das Finanças saudita, com o assentimento do Rei espanhol, contou Canónica aos investigadores suíços, segundo o El Español.
Eventualmente, o dinheiro foi saindo para outras contas, sendo finalmente os restantes 65 milhões de dólares (57 milhões de euros) transferidos para Corinna Larsen, em 2012. Mais uma vez, tratou-se de um suposto presente, desta vez do Rei, «por gratidão e amor», testemunhou a empresária à Justiça suíça, segundo o El País. «Porque ainda tinha esperança de reconquistar-me», justificou, «não para desfazer-se do dinheiro». Seja como for, a Justiça espanhola já abriu uma investigação à hipótese de que os 100 milhões de dólares, de alguma maneira, tenham sido uma comissão ilegal ao Rei espanhol, tendo a ver com o TGV do deserto.
Outra ligação que tem sido levantada pela imprensa espanhola, e talvez mais plausível, tem sido com a conferência do Diálogo Inter-religioso, realizada em Madrid três semanas antes da transferência, onde o regime saudita, cuja reputação estava nas ruas da amargura na altura, foi apresentado «como um regime aberto e tolerante», recordou o El Confidencial.
Além disso, apenas sete dias antes da transferência, soube-se que fora assinado um importante acordo diplomático entre Madrid e Riade, relativo a áreas como a economia, comércio, investimento e indústria. «Na prática, esse acordo deu ao questionado regime de Riade o reconhecimento de um país da União Europeia e abria portas a acordos semelhantes com outras nações ocidentais», lê-se no jornal espanhol.