No meio é que está a virtude

Seria bom que as autoridades de saúde falassem a uma  só voz e fossem bem claras nas explicações que dão, para  não perderem a credibilidade…

A propósito das mais variadas situações, todos utilizamos com alguma frequência uma expressão popular: «No meio é que está a virtude». O que ela quer dizer é que nos devemos esforçar por atingir o meio termo e evitar os extremos – o que nem sempre é fácil, pois nalguns casos o meio termo não existe e prevalece a teoria do ‘tudo ou nada’. 
Tudo isto se aplica na íntegra à situação que estamos a viver após os sucessivos planos de desconfinamento que se seguiram à fase mais dura que tivemos de enfrentar, devido à pandemia covid-19.

O ambiente está hoje mais desanuviado e aos poucos estamos a tentar regressar à normalidade possível, que nada tem a ver com aquela que tivemos de abandonar há cerca de três meses. Porém, da análise que faço da atual situação, destaco duas posições distintas: para uns, há ainda um medo excessivo que os leva a adotar comportamentos exagerados, permanecendo em casa e não querendo contactar com ninguém; para outros, a vida pouco ou nada mudou e nem sequer dão ouvidos às recomendações definidas superiormente. Talvez se possa dizer que existem dois extremos: os excessivamente cuidadosos e os pouco ou nada preocupados com a situação, quando o que deveria acontecer era ficar ali no meio termo, já que ‘no meio é que está a virtude’.

Falando como médico, conheço casos de ambos os grupos. Começando pelo primeiro, não é novidade para ninguém que há muito menos gente nas ruas, nas lojas, nos restaurantes, nos transportes públicos e nos serviços de saúde. Porquê? Porque muitas pessoas, além de terem sido sensíveis às normas das autoridades, procurando não sair de casa, veem na televisão imagens catastróficas e macabras, onde nunca falta o cenário terrível e desolador da morte, apoderando-se delas um medo (para não dizer pânico) que as mantém amarradas ao domicílio. Este medo que lhes foi (e continua a ser) diariamente incutido vai demorar o seu tempo a ser derrubado, e só a muito custo retomarão a normalidade.

Muitos doentes não o negam e confessam-no sem hesitar: «Doutor, tenho medo. Já não consigo olhar para a televisão. Será que em Portugal vai suceder o mesmo que nos outros países?». Neste contexto, o que se me oferece dizer como profissional de saúde é que há muitas imagens que são dispensáveis e até era desejável que não fossem mostradas, por ferirem suscetibilidades e contribuírem para instalar o pânico na população. 

A isto se opõe o grupo dos que não têm medo algum ou que o têm vindo a perder aos poucos – como se vê, por exemplo, nas pessoas que encheram as praias, esplanadas e passeios marítimos nas últimas semanas, sem o mínimo distanciamento umas das outras, seguindo a velha teoria de que o mal só acontece aos outros. 

Um destes ‘defensores’, ao ser confrontado com esse desleixo, dizia-me categoricamente: «Se dentro dos aviões estamos bem mais juntos uns dos outros, num espaço tão fechado, qual a razão e qual o critério para se levantarem tantos problemas nas praias, onde o espaço entre as pessoas é muito maior?». E continuando a defender o seu ponto de vista, perguntava-me com ironia: «Devemos ou não usar máscara? Umas vezes é aconselhável, outras é mesmo obrigatória, mas para alguns é uma falsa sensação de proteção. Afinal em que ficamos?». 

De facto, não há como justificar razoavelmente estes dois pesos e duas medidas, evidentes aos olhos de toda a gente. Seria bom que as autoridades de saúde falassem a uma só voz e fossem bem claras nas explicações que dão, em vez de tentarem justificar o que não tem justificação possível, para não perderem credibilidade. Nada de confusões: crise sanitária como a que já vivemos é uma coisa, crise económica subsequente é outra. É preciso haver critério, bom senso e coerência. Se estes princípios se perderem, é impensável levar as pessoas a aceitar e a cumprir as normas mais básicas e essenciais.

Encaremos o futuro com serenidade e confiança. Melhores dias hão de vir e com eles a esperança de um mundo melhor. Sejamos responsáveis mantendo o sentido cívico. O medo não nos leva a lado nenhum. A despreocupação excessiva também não ajuda ninguém. A solução passa, inevitavelmente, por encontrar uma posição equilibrada no meio termo – pois, agora mais do que nunca, ‘no meio é que está a virtude’.