A minha pátria é a Ericeira. Posso andar por muitos lugares —mas é sempre a ela que volto.
Nos anos 60, quando regressei de Paris, não encontrei casa em Lisboa e fui para lá, onde já tinha vivido em miúda.
E assim começou a paixão.
Confesso: sou muito urbana. Habituada ao barulho, aos cafés, aos amigos ali mesmo à mão de semear. Não me dêem lugares isolados, para profundas meditações solitárias – mas não posso estar longe do mar. A Ericeira tem tudo isso: é uma cidade em ponto pequeno, rodeada por uma paisagem esplendorosa. Por isso a Paula Rego e os filhos se apaixonaram por ela, e lá viveram muito tempo.
Vá lá que o novo urbanismo não lhe fez grandes estragos. Pelo menos no centro. As casas continuam a ser pintadas de azul e branco, e não há arranha céus.
Uma das grandes virtudes: podemos andar pelas ruas às tantas da manhã que não há qualquer perigo. E até há pouco tempo, só se deixava a porta fechada no trinco.
Claro que o sol tem dias em que só aparece às duas da tarde. Como muito bem dizia o prof. José Hermano Saraiva, "a Ericeira não tem banhistas, a Ericeira só tem devotos".
Mas então vamos lá ver o que eu aconselhava a alguém que lá chegasse pela primeira vez…
Comecemos pela cultura.
A meia dúzia de passos tem o Convento de Mafra – Património Mundial da Unesco. Com a tapada, o palácio, e uma das mais belas bibliotecas do mundo. Aqui há muitos anos, o pessoal achava aquilo enorme e sem graça. (Lembro-me de os miúdos lhe chamarem ‘o calhau’…) Felizmente já aprenderam, e digamos que o livro de Saramago também contribuiu para isso.
Descendo em direcção à vila, temos a Ermida de S. Sebastião, uma capela hexagonal do século XVI, com o interior completamente revestido de azulejos, considerado Imóvel de Interesse Público. (Se lá forem em Janeiro, vão-se divertir com a Festa dos Bêbados, onde, no terreiro da capela, toda a gente baila e come…e não é preciso adiantar pormenores)
Temos ainda a Igreja de St. António (ou da Boa Viagem) já na vila, diante da Praia dos Pescadores, da qual se sabe pouca coisa. É de lá que sai a procissão da Senhora da Boa Viagem – mas o que lhe dá maior importância é o facto de ter sido de lá que a família real partiu para o exílio no dia 5 de Outubro de 1910, ‘perante a respeitosa atitude de toda a população da Ericeira’, como se diz na placa colocada numa das paredes.
E não há melhor passeio do que fazer o paredão (com alguns passadiços de madeira) vendo as maravilhas que são as praias de S. Julião, da Calada, de S.Lourenço, de Ribeira de Ilhas, etc.
Outro encanto da Ericeira é haver tanto jovem nas suas ruas… Acontece que ela é a 1.ª reserva de surf da Europa., e a 2.ª do mundo.
Não vale a pena recomendar restaurantes – porque se come bem em toda a parte… Mas não deixem de ir ao Festival do Ouriço do Mar, que se faz num curto espaço de tempo (de fins de Março a princípios de Abril) porque é só nessa altura que os ouriços se podem comer.
E claro, quem vai à Ericeira, tem de fazer a ronda dos bares. Neste momento de pandemia, ainda não estão abertos e alguns até se transformaram em snack-bares para poderem sobreviver.
Mas esperemos que tudo passe.
E, falando em bares e discotecas, primeiro entre os primeiros, o Ouriço, diante da praia dos Pescadores. E aí, respeitinho: o Ouriço, a comemorar os seus 60 anos de existência, é o bar/discoteca mais antigo da Península Ibérica.
Com uma particularidade: todos os anos, em Novembro, um artista diferente pinta a sua fachada. E tem tido fachadas extraordinárias, com temas como ‘Alice no País das Maravilhas’, ‘Arte Nova’, ‘As ruas da Ericeira’, etc.
Mas a Ericeira tem também uma história muito séria.
Se andarem pelas ruas da vila encontram, por vezes, placas nas paredes de algumas casas com nomes alemães, lugares de cidades alemãs: a Ericeira acolheu três mil refugiados durante a 2.ª Guerra Mundial. A Pide, sempre atenta, não os deixava sair para lado nenhum, nem ter qualquer trabalho. O Comité de Apoio dava-lhes um mínimo para sobreviverem – e ainda hoje as pessoas mais idosas asseguram que ninguém ficou nunca a dever nada a ninguém. Também porque as pessoas da Ericeira nunca os deixaram passar fome, mesmo quando eles não podiam pagar. Estabeleceu-se uma boa relação entre todos e, depois de a guerra terminada e cada um ter voltado à sua terra, muitos convidaram as pessoas que os tinham acolhido a irem visitá-los aos seus países.
E se a princípio houve um choque de culturas—as mulheres iam aos cafés (sobretudo ao Salvador, que ainda hoje existe e de boa saúde) e traçavam as pernas nas cadeiras das esplanadas, as mulheres saiam à rua sem meias, os casais beijavam-se em público e viviam juntos mesmo quando não eram casados… – isso também contribuiu para abrir os olhos a quem nunca tinha visto coisas dessas acontecerem ali…
No fim disto tudo – que livro devem levar na vossa visita? Penso que O Memorial do Convento é muito óbvio. Mas levem esse – e também Quando Salazar Dormia, de Domingos Amaral, um romance que fala dos refugiados da 2.ª Grande Guerra, entre eles os três mil que a Ericeira acolheu.
Já gastei o espaço que me deram. Claro que fica muito por dizer. Se me derem o jornal todo – eu conto.