meu medo não era medo a Deus, mas, como é o caso de toda a burguesia secular turca, medo da fúria daqueles que acreditam em Deus demasiado zelosamente», recordou Orhan Pamuk, no seu livro Istambul: Memórias e a Cidade, de 2003. Os receios do futuro prémio Nobel da Literatura, quando era criança, no final dos anos 50, não se podiam manter mais atuais: a Turquia secular, herdeira de Mustafa Kemal Atatürk, unida à volta do nacionalismo turco e não da religião, tem sido desmontada às peças pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, em turco), o partido islamita liderado pelo Presidente Recep Tayyip Erdoğan. Para muitos, a transformação das últimas décadas reflete-se na Hagia Sophia, que Erdoğan reconverteu em mesquita, sexta-feira passada (11 de julho), após a justiça turca declarar ilegal a decisão de Atatürk de tornar o monumento num museu, em 1934. Para a base mais conservadora do AKP é uma vitória sem precedentes, uma revolução religiosa; Para mais de 55% dos turcos, não passa de uma manobra de distração da brutal crise económica, agravada pela pandemia, ou de uma tentativa de ganhar votos em possíveis eleições antecipadas, segundo uma sondagem da Metropoll.
«É bluff, como no póquer», explica Mehmet, de 60 anos, dono de uma loja de carpetes e talheres em Istambul. «Será que já enchemos todas as outras mesquitas na Turquia?», questionou, à Times. É uma boa pergunta. Contudo, mesquitas não é o que falta ao AKP, que assistiu a uma quebra nas intenções de voto e até perdeu a Câmara de Istambul, onde Erdoğan começou a sua carreira política, argumenta Soli Ozel, da Universidade Kadir Has, ao Economist. «A única coisa que sobra no seu inventário é apelar à religião e ao nacionalismo». Ambos trunfos usados no anúncio da conversão da Hagia Sophia.
«Esta é uma mensagem para todas as cidades que simbolizam a nossa civilização, de Bukhara à Andaluzia», disse Erdoğan, num tom comparado ao dos sultões de outrora. O Presidente turco prometeu continuar o seu «caminho abençoado» para «cumprir a promessa de Mehmet II», o conquistador de Constantinopla, hoje em dia Istambul, acrescentava o comunicado em árabe – já o comunicado inglês falava da Hagia Sophia apenas como «herança partilhada da humanidade».
Das claques sanguinárias a uma cúpula suspensa dos céus
A história da Hagia Sophia, ou Santa Sabedoria, catedral, depois mesquita, depois museu, é tão complexa como a da cidade que a rodeia, uma encruzilhada entre a Europa e a Ásia, o cristianismo e o islão. Erguida no ano 360, nas margens do Corno de Ouro, enquanto Roma agonizava de morte e Constantinopla se afirmava como capital do império romano do oriente, ou bizantino, a catedral teve de ser reconstruída duas vezes, após ser incendiada em brutais rebeliões. A último delas, em 532, ficou conhecida com os motins de Nika– estima-se que quase metade da cidade ardeu e dezenas de milhares pereceram.
Hoje em dia, a escala da violência é inimaginável, mas os motivos soam familiares. Na altura, no império romano, havia duas equipas desportivas, os verdes e os azuis, que competiam nas corridas de carros. A rivalidade era amarga e as claques conhecidas pela violência, uma espécie de hooligans da antiguidade – qualquer semelhança com a rivalidade entre o Galatasaray, que joga no lado europeu de Istambul, e do Fenerbahçe, do lado asiático, é pura coincidência. À época, o cronista Procopius, registou que, quando o povo já estava furioso com o aumento dos impostos, o imperador Justiniano – fã dos azuis – cometeu o erro de condenar à morte dirigentes verdes e azuis. As claques prontamente esqueceram o que as separava, juntaram-se no hipódromo após uma corrida e avançaram sobre a cidade, pilhando e gritando o cântico reservado aos carroceiros, «nika, nika», ou «vitória, vitória», em grego.
Justiniano conseguiu manter-se no poder, muito graças à intervenção da sua mulher, Teodósia, uma antiga prostituta, artista circense e líder de claque dos azuis. O imperador massacrou os amotinados e reconstruiu a Hagia Sophia, que se manteria a maior catedral do planeta por mais de um milénio. Demoraram uns meros seis anos levantá-la do chão – pense que os construtores medievais, mais 600 anos depois, demoraram um século a finalizar Notre Dame. Justiniano trocou a madeira queimada por pedra e deu à catedral a grandiosidade que hoje conhecemos, a sua precisão geométrica.
«Poderia dizer-se que o seu interior não é iluminado de fora pelo sol, mas que a radiância brota de dentro de si, tal é a abundância de luz que ilumina este santuário», admirou-se Procopius. À época, as paredes da catedral estavam cobertas de espelhos e prata – Justiniano era iconoclasta, ou seja, aderia à proibição religiosa da veneração de ícones. Com os séculos, isso seria esquecido e a Hagia Sophia foi coberta de elaborados mosaicos dourados, ilustrando a bíblia, os santos e arcanjos, ao lado dos imperadores e das suas famílias. Mas a maravilha das maravilhas seria sempre a icónica cúpula da Hagia Sophia, um feito arquitetónico extraordinário, usando apenas com tijolos e argamassa. «Parece que não é alicerçada em sólida alvenaria, mas suspensa dos céus», descreveu o cronista bizantino. O próprio imperador congratulou-se: «Salomão, ultrapassei-te».
A ‘maçã vermelha’ do mundo
Qual novo templo de Jerusalém, a Hagia Sophia tornou-se no centro do mundo para os cristãos ortodoxos, separados dos católicos pelo cisma entre o ocidente e o oriente, no século XI. Em causa estavam discussões fraturantes, como se o Espírito Santo vinha só do Pai ou do Filho também, ou se o pão da hóstia devia levar fermento ou não. E, talvez mais importante, se o poder religioso devia ser sediado no trono de São Pedro, em Roma, ou no último reduto do império romano, Constantinopla, antiga capital de Constantino, o primeiro imperador romano que se converteu ao cristianismo.
Seja como for, longe iam os tempos de outro do império bizantino. O súbito surgimento do império árabe, unido pelo islão e pela liderança de Maomé, no início dos anos 620, apanhou desprevenido os bizantinos, focados numa longa guerra com os persas. Face aos sucessores do profeta, rapidamente perderam a Síria, o Egito e Palestina – a perda de Jerusalém foi particularmente amarga.
Entre ataques e contra-ataques, conquistas e reconquistas, maior ou menor prosperidade, começara a longa decadência do império, em redor da velha Constantinopla, rainha do estreito do Bósforo. Continuou a ser o lar de meio milhão de pessoas, uma metrópole efervescente, protegida por muralhas invencíveis, onde exércitos russos, búlgaros, árabes e turcos quebravam como ondas na praia, engordada pelo comércio entre oriente e ocidente: Chamavam-lhe a «maçã vermelha» do mundo, um fruto sumarento, pronto a ser colhido.
Quem devorou a maçã foram adversários inesperados. Não foram nem os ferozes rus’, das estepes ucranianas, descendente dos vikings recentemente convertidos, nem os sucessivos impérios muçulmanos, no Oriente. Foram os seus irmãos cristãos do ocidente, cruzados vindos sobretudo de Veneza, França e do Sacro-império Romano. Tinham jurado ao papa Inocente III reconquistar Jerusalém e não atacar nenhuma cidade cristã – a meio caminho esgotaram os fundos e decidiram saquear Constantinopla, em 1204. É por isso que quando visitamos a Basílica de São Marcos, em Veneza, podemos ver os famosos Cavalos de São Marcos, debaixo dos quais, noutros tempos, costumavam passar os adeptos dos verdes e azuis, no Hipódromo de Constantinopla – os cruzados mataram, violaram e roubaram tanto quanto podiam. Deixaram para trás a carcaça de uma cidade que agonizou mais de dois séculos, até à conquista pelos otomanos, em 1453, que marcou o fim da Idade Média, para muitos historiadores.
Hüzün
A melancolia por entre o bulício, o sentimento de lenta degradação, a sujidade e poeira a cobrir um passado glorioso ainda se sentem nas pedras da cidade. Hüzün, chamam-lhe em turco, um sentimento que «não só paralisa os habitantes de Istambul, mas dá-lhes uma autorização poética para estar paralisados», escreveu Pamuk. Hüzün, dolorosa herança dos bizantinos, que, por sua vez o receberam dos velhos romanos. Hüzün, que os turcos esqueceram no pico do seu império, no tempo dos janízaros às portas de Viena e a marchar nas montanhas do Irão, das galés que dominavam o mar, de Gibraltar ao Índico, trazendo despojos extraordinários até ao corno de Ouro, deixados aos pés da Sublime Porta.
Hoje, quase cem anos depois do fim do império otomano e do nascimento da Turquia, sente-se de novo hüzün em Istambul, onde «os restos de uma gloriosa civilização do passado são visíveis em todo o lado», recorda Pamuk, no seu livro sobre a cidade. «Não importa quão mal preservados, não importa quão negligenciados ou cercados por monstruosidade de betão, as grandes mesquitas e outros monumentos, bem como os detritos menores de impérios em cada rua e cada canto – os pequenos arcos, as fontes, as mesquitas de bairro – causam dor no coração a quem vive entre eles», desabafou o prémio Nobel. «Para mim, sempre foi uma cidade de ruínas e de melancolia de fim de império. Passei a minha vida ou batalhar esta melancolia ou (como todos os habitantes de Istambul) a fazê-la minha».
Fantasmas e profecias
«Ouviram falar de uma cidade com terra de um lado e o mar dos outros dois lados? A Última Hora não alvorecerá antes que seja tomada pelos setenta mil filhos de Isaac», prometiam as velhas profecias islâmicas, supostos hadith, ou ditos do profeta, de autenticidade dúbia – mas muito populares entre os mais de 50 mil otomanos que tomaram Constantinopla. Chamaram-lhe Istambul, literalmente ‘a cidade’, no grego medieval falado coloquialmente pelos habitantes. Em lado algum a majestade da cidade se mantinha como na Hagia Sophia: quando o jovem Mehmet II – amplamente considerado um governante menos conservador do que era habitual no seu tempo – marchou catedral a dentro, ao som do saque, matanças e pilhagens, deitou poeira sobre a cabeça, em sinal de respeito. Rapidamente, Mehmet II converteu a catedral em mesquita, tapando com estuque ou destruindo os seus maravilhosos mosaicos: como Justiniano, os muçulmanos também proíbem o uso religioso de imagens. Contudo, o sultão otomano, profundo admirador do período clássico – tomou o título «César dos Romanos» após tomar Constantinopla e a fazer a sua capital – também restaurou a estrutura, que estava praticamente ao abandono, construindo ainda um minarete, do topo do qual os muçulmanos são chamados à oração. Outros minaretes foram construídos pelos seus sucessores, dando ao monumento o seu perfil particular, que funde traços cristãs e islâmicos.
Após a queda do império otomano, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, Mustafa Kemal, conhecido como Atatürk, ou pai dos Turcos, juntou outra tradição à Hagia Sophia: tornou-se um museu, em nome do laicismo, à semelhança de outras mesquitas. Muitos regozijaram-se, mas entre os mais conservadores, os mais rurais, os mais pobres, os mais devotos a Deus, fervia um enorme rancor – que mais tarde Erdoğan soube instrumentalizar na perfeição.
«No meu prédio, as únicas pessoas interessadas nesse fantasma eram as empregadas e os cozinheiros», notou Pamuk. «Apesar de eu estar vagamente consciente de que, pelo menos em teoria, o amor de Deus se estendia além deles, para todos os que viviam sob nosso teto, eu também sabia que pessoas como nós tinham sorte o suficiente para não precisar dele», acrescentou. É que «na fúria secular da nova República de Atatürk, afastar-nos da religião era ser moderno e ocidental. Era uma presunção em que cintilava, de tempos a tempos, a chama do idealismo», explicou o autor. «Mas isso era em público. Na vida privada, nada vinha preencher esse vazio espiritual. Limpa de religião, a casa tornava-se tão vazia como as mansões vazias à beira do Bósforo, rodeadas de jardins sóbrios e escurecidos pelos fetos».
Fúria internacional
Naturalmente, quando Erdoğan anunciou a decisão de transformar a Hagia Sophia em mesquita, os alarmes começaram a soar, com condenações da própria UNESCO, que vai ponderar a avaliação do monumento como Património da Humanidade, bem como de líderes religiosos, incluindo o papa Francisco, que se mostrou «entristecido» com a decisão. Já entre cristãos ortodoxos, as fúria não podia ser maior. «As preocupações de milhões de cristãos não foram ouvidas», lamentou um porta-voz da Igreja Ortodoxa Russa. «É uma provocação aberta ao mundo civilizado», declarou Lina Mendoni, ministra da Cultura da Grécia, onde muitos ainda saúdam o Ano Novo brindando: «Tou chronou stin poli!». Ou seja, «para o ano, em Constantinopla».
Contudo, talvez os grandes perdedores sejam os turcos que se orgulhavam do laicismo do seu Estado, um caso raro entre países de maioria muçulmana, sugeriu Orhan Pamuk, em declarações à BBC. «Há milhões de turcos seculares, como eu, que estão a clamar contra isto. Mas as suas vozes não são escutadas». J