Cavaco Silva fez há dias 81 anos.
Esta semana, a 19 de julho, cumpriram-se 33 anos sobre a primeira das quatro maiorias absolutas por ele alcançadas.
Estão pois a completar-se 23 anos desde que abandonei, primeiro parcialmente – em 1987, depois de forma drástica, imposta pela de incompatibilidades, em 1991, um dos amores da minha vida: a Medicina. Os 20 anos de dedicação apaixonada à profissão que adorava, a de ser médico, em ‘full time’.
Fi-lo por me ter entusiasmado com os primeiros sinais de liderança diferente que estava a mobilizar um país desiludido. Por acreditar num projeto novo e prometedor para o futuro de todos nós.
Desde então fui três anos vice-presidente de um Grupo Parlamentar que apoiou o Governo mais reformista de Cavaco, o de 1987/91, fui quatro anos secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares do seu último executivo, fui presidente do PSD Porto 10 anos – a dar-lhe vitórias autárquicas contra a corrente, enquanto o PSD ia acumulando derrotas – nomeadamente entre 1991 e 1995, fui membro eleito do seu Conselho Nacional entre 1985 e 1995, fui 3 vezes membro de todas as suas comissões de honra enquanto candidato presidencial, fui presidente da terceira maior Câmara do país durante 10 anos dos seus mandatos presidenciais e, finalmente, fui quatro anos seu conselheiro de Estado.
Tenho conhecimento e informação para contar muitas histórias desse período, mas ainda não é o momento política e eticamente recomendável para tal. No momento certo esses escritos terão a sua oportunidade e o seu interesse. Uns com um distendido caráter lúdico, outros com real importância política.
Então porque estou hoje a escrever sobre o ex-Presidente?
Porque ele comemorou há dias 81 anos e foi esse o dia aproveitado para, associando a data à acusação do Ministério Público a Ricardo Salgado, denegrir o ex-líder.
Cheguei a ler por aí, Associação criminosa financiou campanhas de Cavaco!
É certo que de seguida era relatada a versão real, mas o título garrafal já estava lá. E a tal verdade é simples e corriqueira. Um grupo de abonados dirigentes do ex-BES subsidiou legalmente a campanha presidencial de Cavaco, o que de certeza terá feito, décadas, com outros ex-Presidentes e candidatos a primeiros-ministros, pelo menos do leque partidário que vai do CDS ao PS.
Se depois fizeram trafulhices, e tudo indica que as fizeram, para recuperar ilegalmente o que haviam subsidiado de acordo com a lei, tal não envolve de todo os apoiados. Muitos deles até desconheceriam o seu apoio personalizado inicial.
Mais, só por maldade se pode imaginar Cavaco, Sampaio, Eanes, ou qualquer outro dirigente desta estirpe, a ligar diretamente a alguém a pedir apoio financeiro para uma campanha política.
Isso são funções para burocratas do staff, quantas vezes ao arrepio dos líderes. No caso vertente, com alto grau de probabilidade, a iniciativa deve ter partido do responsável máximo da primeira campanha, que com infelicidade laudatória, foi denominado de ‘O meu Mourinho’. Refiro-me a esse enorme ‘gestor e empresário’, essa eterna esperança da vida política, chamado Alexandre Relvas.
Mas isso são trocos de má língua, passemos pois a coisas sérias.
Sou muito sensível à injustiç a soez e por isso, perante o silêncio de tantos que fizeram a vida à sua sombra (a de Cavaco Silva), eu, que nada lhe devo, não podia deixar de sair a terreiro emitindo uma opinião equilibrada (houve também algumas, poucas, exceções como foi o caso de José Luís Fernandes, um colaborador leal e um homem de caráter).
No entanto eu fui dos que senti o impulso de também ter que dizer algo. Faço-o na qualidade de cidadão comum, que se considera lúcido, exigente, crítico e justo.
É então sobre o único português que foi 20 anos líder do país em democracia, que venceu cinco sufrágios diretos e universais, quase todos uninominais, quatro com maioria absoluta, que vou tecer algumas breves considerações.
É óbvio que Aníbal Cavaco Silva não é um homem de afetos na vida pública, seja qual for a forma como os entendamos. Não é um populista extrovertido, muito menos um beijoqueiro caça votos.
Não é o seu estilo, a sua idiossincrasia e isso, só por si, não o diminui. Nem a ele, nem a ninguém que queira fazer um trajeto de vida na política de acordo com essa atitude sinceramente estrutural.
É um facto que tem alguns tiques de personalidade menos ‘simpáticos’, que aliás foi burilando ao longo dos anos, mas que não justificam muitas das omissões que hoje o condenam a uma injusta e excessiva solidão.
Muito menos são justificação para o sujeitar a ofensas que perversamente tentam reescrever a história.
Infelizmente é assim a normal reatividade da natureza humana ferida ou ofendida, é assim a vingança dos que nunca perdoaram as derrotas por ele infligidas. Não há pois que estranhar tais dictates e campanhas.
Pela minha parte tenho os meus queixumes, diretamente proporcionais à dedicação e à crença com que servi os seus projetos.
Como homem afetivo e emocional que sou, lastimo que nunca tenha tido uma palavra de apreço e estímulo em relação ao seu secretário de Estado que, no Parlamento, muitas vezes sozinho, apanhou com o ímpeto arrasador do guterrismo em ascensão.
Que nunca tenha agradecido, nem por cartão, o serviço prestado no executivo até ao último dia do seu último Governo.
Que nunca tenha tido uma palavra de gratidão em relação a um dirigente, então poderoso a norte, que quando a sua popularidade se esboroava, lhe montou em 1995 um staff de campanha presidencial e que numa tarde lhe meteu numa suite do Hotel Infante Sagres o essencial das figuras que acabaram por ser os cabeças de cartaz nacionais dessa candidatura.
Recordo até com desgosto tê-lo visto, anos mais tarde, já Presidente, condecorar o único convidado que naquela tarde sombria de novembro de 2005, de forma baixa, indigna, quase lhe ‘cuspiu’ em cima, saindo da reunião a clamar aos burros pelo apoio que ia dar a Jorge Sampaio.
Foi também com desgosto que vi a forma menos afetiva como tratou Fernando Nogueira ou como deixou que se jogasse um evitável jogo de equilíbrios na sua sucessão, distribuindo trunfos entre as candidaturas de Nogueira e Barroso. Nem um nem outro mereciam essa ambivalência.
Foi com tristeza que nunca compreendi o veto quanto à ascensão a ministros dos únicos secretários de estado políticos, com bom trabalho desenvolvido, e cujo o único defeito era o de serem demasiado independentes e coloridos para o gosto de uma pequena corte cinzento a que o rodeava – Santana Lopes e eu próprio.
Neste caso é um pouco aquela máxima bem portuguesa, ‘quem não se sente não é filho de boa gente’.
Não posso igualmente subscrever a falta de solidariedade partidária que pautou o famoso artigo sobre a ‘Má Moeda’, que acabou por ser uma pedrada decisiva no já difícil equilíbrio de poder do Governo de Santana.
Lastimo ainda nunca me ter agradecido o sucesso da organização de uma panóplia de comícios encomendados, que o vitoriavam com multidões, contrariando o que era uma época de descida abrupta da sua popularidade.
E foram muitos os que me encomendaram nessa altura e que realizei com sucesso desde 91, e principalmente no decadente período que decorreu entre 91 e 95.
Tais exuberantes manifestações públicas, na ausência de redes sociais, camuflaram muitos meses uma descida a pique da popularidade do executivo e do seu líder.
Mais tarde achei estranhamente amesquinhante ver anunciar e concretizar parcialmente a condecoração dos Presidentes das quatro maiores autarquias do país, ver condecorar todos os autarcas com três mandatos concretizados, assistir à condecoração de todos os ex-líderes do PSD – tivessem ou não sido primeiros-ministros, ver condecorar os ex-conselheiros de Estado, e ter conseguido nesse amplo leque de possibilidades excluir o único cidadão que cabia há anos em todos esses critérios.
Para mim, esses prendicalhos tão vulgarizados, que uma geração mais tarde terminam no espólio esquecido e poeirento da garagem dos netos ou no aterro sanitário mais próximo, para mim pouco valem, ‘mais quand même’, expressão limite que tantas ouvi ao meu Mestre Jean Aicardi, quando achava que tinham desdenhado demais da sua paciência.
Ate por tudo isso já foi com um sorriso de gozo desprendido que constatei que no seu livro sobre o consulado de Sócrates, em que também abordou o contacto tido no mesmo período com três líderes do PSD, ninguém ter reparado que um obnubilado editor retirou um deles do retrato de família.
Perante tudo isto o meu silêncio era compreensível e até algum azedume seria eventualmente entendido.
Até porque sei que esta narrativa poderia ser feita, ou pelo menos subscrita, como é habitual na hipocrisia de um prudente silêncio, por dezenas de muitos dos seus mais prolongados e leais servidores.
Mas, paciência, eu nasci diferente, sigo diferente e um dia morrerei diferente.
Por isso vou por outro caminho.
Cavaco Silva não é só isto que eu relatei, é mais, muito mais do que isto.
É um homem de um rigor escrupuloso, quase patético, a decidir sempre de acordo com o seu sentir, sem ser influenciado por ninguém, o que é o interesse do Estado.
Na primeira legislatura de maioria absoluta, vi muitas vezes um supe-maioritário grupo parlamentar vacilar quando da votação do primeiro ciclo de reformas estruturais: privatizações, alterações à legislação laboral, alteração à loucura da reforma agrária soviética, alteração da lei de limitação de setores da economia, mudança das regras gonçalvistas de funcionamento do Parlamento, primeiro embate aos interesses de várias corporações instaladas há décadas no seio do Estado.
Vi muitos deputados a vacilarem, alguns membros do governo a conspirarem e a prognosticarem a queda do executivo na rua, mas assisti do outro lado da barricada ao exercício implacável das convicções de um primeiro-ministro que sabia que hesitações naquele momento seriam porventura o fim do regime. O país nunca lhe poderá pagar esse estoico serviço.
Tive o privilégio de seguir de perto alguns Conselhos Europeus e nessa altura Portugal teve um primeiro-ministro ouvido, respeitado, imitado e repetido. E à mesa estavam Delors, Chirac, Miterrand, Kohl, González e Thatcher. Não era constituído pelo grupo de cinzentões medíocres, tarimbeiros e mangas de alpaca, que nestes tempos voltaram ao caricato hábito das reuniões noturnas que duram uma semana. Estilo PREC – confusão institucional do Portugal pós 25 de Abril de 1974.
Reuniões de onde nada sai de verdadeiramente estrutural e com visão de futuro. Nenhum destes atuais líderes serviria sequer para levar a mala dos dessa geração,
Foi este PM que conseguiu ter um Governo onde coexistiram personalidades tão diversas, todas igualmente super-capazes, como Fernando Nogueira, Eurico de Melo, Leonor Beleza, Álvaro Barreto, João de Deus Pinheiro, Mira Amaral, Silva Peneda, Miguel Cadilhe, Marques Mendes, Ferreira do Amaral, Paulo Mendo e muitos outros de igual gabarito. Verdadeiros ‘dream teams’ quando comparados com as equipas sofríveis das últimas décadas.
É verdade que a teimosia de manter alguns pesos mortos em pastas estruturais – como aconteceu com aquele ministro que durante dez longos anos geriu a aplicação dos fundos comunitários, andando uma década a construir sumptuosos quartéis de bombeiros e outros monumentos quejandos em detrimento do apoio à economia real – lhe diminuíram a imagem qualificada dos seus executivos.
Foi do mesmo modo infeliz quando chegou a hora das inevitáveis remodelações – é curioso que alguns desses fósseis ainda sobrevivem no Conselho Estratégico de Rui Rio – mas isso foi também resultado do esgotamento da capacidade de renovação partidária.
Todavia esses perdoáveis erros de ‘casting’, maculando injustamente a fotografia dos seus governos, não alteraram o fundamental da leitura dessa época. Cavaco Silva liderou, de longe, os melhores governos que Portugal teve em democracia.
Mais tarde foi o primeiro cidadão oriundo do centro direita a ser eleito Presidente da República. Num país politicamente hemiplégico desde a lavagem ao cérebro de 1974/75, foi, por si só, uma enorme vitória pessoal.
Posteriormente saiu-lhe a ‘fava’. O pior governo do Portugal moderno e depois a maior crise da Europa do pós guerra (nesta fase, por ignorância óbvia do que se vai passar, excluímos a que decorrerá da atual pandemia).
Quem faria diferente naquelas condições? Quem faria melhor? Duvido que alguém o fizesse.
Ao criar as condições para afastar Sócrates esteve bem e teve então um apoio maioritário do país. Aliás, salvou o país de uma tsunami desastrosa.
Ao ser firme em dar estabilidade política a um Governo que teve de gerir ‘a mãe de todas as crises’ só demonstrou um gigante sentido de Estado.
Era mais fácil demitir o Governo de Passos Coelho e assim agradar circunstancialmente ao ‘povão’ legitimamente sofrido e revoltado, mas teria sido um suicídio para a nossa credibilidade internacional e teria mergulhado Portugal no caixote do lixo da História contemporânea.
Sacrificou a sua imagem ao interesse nacional, permitindo o posterior brilharete de António Costa, das meninas da esquerda caviar e do sindicalismo decrépito.
Poderia ter tido aqui e acolá uma atitude mais explicativa, mais humana e afetiva? Talvez, e esse foi também um dos pecadilhos de Passos Coelho, mas tal não mudaria o essencial do caminho que tinha que ser trilhado.
A História demora a julgar, mas já há muitos portugueses com saudades daquele homem ‘seco’, mas sério, incorruptível e patriota, à moda antiga. Mas a História será justa. É, normalmente, sempre justa.
Porque de vez em quando é útil e pedagógico que alguém mais livre e isento reponha alguma ordem no debate, aqui fica um despretensioso e sucinto testemunho de um ‘Cavaquista Relutante’, mas ainda assim, por coerência ética, cavaquista.
P.S. – Eu sei que Cavaco afirmou a estabilidade do BES antes da sua queda. Qualquer Presidente com sentido de responsabilidade, com a informação que tinha, teria feito o mesmo.