Longe vão os tempos de espiões a mirarem-se em bares e átrios de hotéis glamorosos, de vigias tensas e perseguições em território inimigo. Quando um cidadão de Singapura, Jun Wei Yeo, de 39 anos, conhecido por Dickson Yeo, confessou ser um agente a soldo das secretas chinesas, após ser detido em Washington, atrás das linhas inimigas, as suas atividades não podiam ser mais diferentes daquilo que vemos nos filmes do 007: Yeo usava a rede social LinkedIn para obter informação confidencial de antigos militares ou analistas norte-americanos, desesperados por um emprego – os mais desesperados eram assinalados para futuro recrutamento, confessou Yeo, na semana passada. No mesmo dia, soube-se que foi detida Tang Juan, uma cientista chinesa acusada de fraude por não revelar que tinha ligações com o Exército de Libertação Popular quando pediu um visto norte-americano, tendo sido descobertas fotos suas de uniforme. Um funcionário do Departamento de Justiça dos EUA aproveitou para explicar à CNN que o consulado chinês em Houston, onde se teria escondido Tang Juan, funcionava como centro operacional de roubo de propriedade intelectual de universidades, empresas e centros de investigação: suspeitam que fosse um «microcosmos de uma rede mais vasta de indivíduos em mais de 25 cidades». Face à decisão de Washington de fechar o consulado de Houston, Pequim retaliou fechando o consulado norte-americano em Chengdu.
Os casos de Yeo e Tang Juan são apenas um entre o crescente número de alegados esquemas de espionagem chinesa revelados recentemente, à medida que aumentam as tensões entre as duas superpotências. Levanta-se a questão: será que a China está a estender o alcance das suas secretas ou que EUA e os seus aliados estão simplesmente mais atentos? Talvez estes incidentes fossem antes detetados e não soubéssemos, quando não eram utilizados como arma de arremesso diplomático? Ou será uma combinação de todas estas possibilidade?
Verdade seja dita que, no que toca ao consulado de Houston, Washington sabe perfeitamente que as missões diplomáticas dão uma ótima cobertura para espionagem: tanto a CIA como os seus parceiros dos Five Eyes, uma aliança entre as secretas dos EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Nova Zelândia, fazem-no recorrentemente. «Eles fazem-no, nós fazemo-lo. Nós apenas esperamos apanhá-los a fazê-lo e esperamos que não nos apanhem», explicou à ABC Anthony Glees, professor de Política na Universidade de Buckingham, especializado em segurança e serviços secretos.
Para Glee, em tempo de pandemia, é provável que o consulado de Houston fosse dos mais relevantes centros de espionagem chinesa, dada a sua proximidade a importantes centros de investigação farmacêutica; já Chengdu «era onde os EUA juntavam informação sobre o Tibete e do desenvolvimento de armas estratégicas pela China em regiões vizinhas», declarou ao jornal australiano Wu Xinbo, professor de Estudos Americanos na Universidade de Fudan, em Xangai.
«Faz tudo parte do ‘grande jogo’», explicou Anthony Glee – mas o fecho e invasão do consulado de Houston, pelas forças de segurança dos EUA, esta sexta-feira, algo ilegal à luz do tratado de Viena, viola todas as regras. «Trump luta pela reeleição e atirar-se à China neste momento faz sentido politicamente, mesmo que não haja um motivo particular para isso, honestamente», avalia Glee. Ainda assim, fica a curiosidade de saber o que estaria nos documentos queimados por funcionários do consulado chinês de Houston, em barris de metal, nos dias antes da rusga.
Espionagem eficiente
Importa salientar que muitos espiões com passaporte diplomático até são legais – nos EUA, basta registarem-se como agentes estrangeiros e respeitarem algumas regras. Não é esse o caso de Jun Wei Yeo, que agora pode enfrentar uma pena de até 10 anos de prisão, após confessar ser «um agente ilegal de um poder estrangeiro».
Formado em relações internacionais na prestigiada Faculdade de Políticas Públicas Lee Kuan Yew, onde estudou boa parte da administração de Singapura, Yeo parece ter seguido o caminho do seu orientador de doutoramento, Huang Jing, um professor sino-americano, expulso de Singapura, em 2017, pelo mesmo crime de que hoje o seu pupilo é acusado. Não se sabe se Jing terá tido algo a ver com o primeiro contacto de Yeo com as secretas chinesas, que este confessou ter ocorrido em 2015, num conferência em Pequim. Aí, foi abordado por vários homens, que lhe pediram relatórios políticos e informação, mas sobretudo conhecimento interno e rumores do que se passava nos bastidores do Estado norte-americano. Yeo acedeu, mas rapidamente percebeu que os seus contactos eram na verdade agentes da China: ainda assim, decidiu levar a cabo o acordado.
Para tal, Yeo usou «sites de networking profissional e uma falsa empresa de consultoria para atrair americanos que poderiam ser de interesse», explicou em comunicado o procurador encarregue do caso, John Demers. Em 2018, o agente chinês publicitou um anúncio de emprego e recebeu mais de 400 currículos, uns 90% deles de antigos militares e funcionários norte-americanos com autorização de acesso a informações secretas.
Alguns dos contactos de Yeo receberam milhares de dólares para escrever relatórios para a suposta empresa de consultoria, com recurso aos seus conhecimentos internos. Os assuntos iam do desenvolvimento dos caças F-35 aos impactos da retirada das tropas dos EUA do Afeganistão. A pedido de Pequim, eram também questionados quanto aos seus problemas financeiros ou pessoais, que os pudessem deixar suscetíveis a subornos ou chantagem. Yeo foi detido quando veio a Washington recrutar um dos seus alvos.
A questão é que, nos novos tempos da espionagem, «se fores uma agência secreta estrangeira, o LinkedIn é uma mina de ouro, porque podes encontrar amigos, seguidores, família – e a posição na hierarquia de empresas», avisara o ano passado Clint Watts, antigo agente do FBI e investigador de cibersegurança, à CNBC. Tudo isto se torna informação pública, acessível sem se ter de quebrar uma única Firewall.
E Pequim está atento à oportunidade: «Em vez de enviarem espiões aos EUA para recrutar um único alvo, é mais eficiente sentarem-se atrás de um computador na China e enviar milhares de pedidos de amizade», notou William Evanina, diretor do Centro Nacional de Segurança e Contra inteligência, ao New York Times. Não é tão charmoso como vemos nos filmes de espiões, mas é muito eficiente.