Sangue, suor e lágrimas

A subida drástica da inflação nos últimos anos, a instabilidade política e social e o aumento do desemprego tornam a vida no Líbano numa missão quase impossível. E quando já todos pensavam que pior não podia existir, uma tragédia (evitável) desfigura Beirute. 

Durante os quase 8 anos que vivi em Paris conheci vários libaneses, tendo ficado amiga de alguns. Recordo-me bem do dono da padaria no XVIème arrondissement e nunca me esquecerei do médico que trouxe ao mundo os meus dois filhos. Os libaneses não viram as costas à pátria e têm prazer em partilhar as histórias e tradições do seu país. Todos eles têm um traço em comum: o sentido de humor. Normal, tratando-se de pessoas que nasceram numa terra, há muito, assombrada por desgraças, reconhecem. Rir é mesmo o melhor remédio.

Deliciei-me com Caramel, ri e chorei com Et maintenant, on va où? E não fiquei indiferente à história de Capharnaüm. Três filmes da realizadora libanesa Nadine Labaki que também fazem do humor a arma mais poderosa para enfrentar as adversidades. Bofetada de luva branca aos analfabetos do amor. Uma contra-corrente à iliteracia das emoções.

 

O Líbano tornou-se, oficialmente, independente em 1943, mas as fortes ligações a França mantêm-se até hoje. Conhecido, durante as décadas de 50 e 60, como a ‘Suíça do Médio-Oriente’ devido ao seu desenvolvimento económico, o país viu-se, desde cedo, massacrado pelas tensões sociais que surgiram logo após a criação do Estado de Israel e que teimam em perdurar. Os mais jovens reclamam laicidade, algo difícil num país com 18 religiões reconhecidas oficialmente. 95% da população é árabe, mas 40% não são muçulmanos. Muitas vezes, o culto divide em vez de unir.

A subida drástica da inflação nos últimos anos, a instabilidade política e social e o aumento do desemprego tornam a vida no Líbano numa missão quase impossível. E quando já todos pensavam que pior não podia existir, uma tragédia (evitável) desfigura Beirute. Neste país que vive a ferro e fogo o agora é urgente porque o futuro é mais do que incerto. Nesta terra que parece ter sido esquecida por Deus, como me comentou um amigo, sangue, suor e lágrimas são o pão nosso de cada dia. 

Acidente ou ato deliberado? O Governo já prometeu investigar as causas das explosões e responsabilizar os culpados. Vários trabalhadores do porto de Beirute estão em prisão domiciliária. Mas todas as panaceias serão insuficientes porque o mal já está feito. Falhou a prevenção, fizeram-se ouvidos moucos às denúncias feitas por peritos. Restam as duas semanas de estado de emergência para enterrar os mortos, cuidar dos feridos, limpar as ruas, enxugar as lágrimas, arregaçar as mangas e renascer. Os libaneses fazem-no desde que são gente. Ou não tivessem no centro da sua bandeira o cedro, símbolo de força, resistência e crescimento. 

 

O resto do mundo assiste horrorizado às imagens partilhadas na internet e alguns pensam que isto só acontece aos outros. Para muitos, o Líbano está longe da vista e, portanto, longe do coração. No entanto, este ‘acidente’ não é um caso isolado. Uma fábrica, em Toulouse, explodiu em 2001 e outra no Texas em 2013, em circunstâncias semelhantes. Convém dizer que o nitrato de amónio que provocou as duas explosões em Beirute é um fertilizante muito utilizado na agricultura e na construção. O porto de Saint-Malo, no noroeste de França, cidade onde vivo atualmente, acolhe entre 40.000 a 60.000 toneladas de nitrato de amónio por ano. Há também quem utilize esta substância para o fabrico de bombas artesanais.

Os países ocidentais enviam ajuda humanitária, medicamentos e víveres. Insistem em divulgar o número de vítimas americanas, francesas, portuguesas, alemãs… Como se certas vidas valessem mais do que outras. Como se embaixadores, médicos, arquitetos ou engenheiros fossem mais importantes que professores, cozinheiros ou mecânicos. No meio do cenário apocalíptico só há uma certeza: a raça humana é o único inimigo.