Quatro anos em dez são quase metade. Metade de uma vida tão jovem que este mês se tornou numa ignóbil arma de arremesso para os grupos extremistas antiaborto e evangélicos no Brasil, num ataque contra a própria criança e a equipa médica que viria a ajudá-la.
Primeiro, o caso: desde os seis anos que a menina no epicentro da história era violada pelo tio. A estrutura familiar deste núcleo residente na cidade de São Mateus, em Vitória, era periclitante: a mãe da criança morreu recentemente, o pai está preso e a menina vivia com a avó. Queixando-se de dores abdominais, foi levada ao Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória, no Estado Espírito Santo, no dia 7 de agosto. Foi aí que descobriram que estava grávida, mas foi-lhe negado um aborto, tendo a equipa médica alegado que a gravidez já passava das 22 semanas. Após a confirmação da gravidez, a criança acabou por revelar os ataques de que tinha sido alvo e que manteve em segredo, após ser ameaçada. O agressor de 33 anos, casado com uma tia, colocara-se entretanto em fuga.
Já em casa, desenvolveu diabetes gestacional – uma condição que numa gravidez deste género a poria em risco de vida, relata a imprensa brasileira. A lei brasileira prevê três situações em que o aborto é possível: quando existe uma violação, quando o feto é portador de anencefalia, ou seja, não possui cérebro e, finalmente, quando a gravidez constitui risco de vida para a gestante. Segundo esta lei de 1940, a gravidez não pode ter mais de 22 semanas e o feto não pode pesar mais de 500 gramas. Apesar de a situação da criança se enquadrar em dois dos pontos previstos – estamos perante uma vítima de violação e a gravidez representava risco de vida – foi preciso o caso chegar à Justiça para que o direito ao aborto, que coincidia com a vontade da criança e da família, que desde o primeiro instante pediu o término da gestação, relata a Veja, pudesse ser acolhido.
Segundo o Estadão, foi o Ministério Público brasileiro a dar entrada com uma ação civil através da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Mateus, no dia 10 de agosto. Após analisar o caso, na sexta-feira, dia 14 de agosto, o juiz António Moreira Fernandes, desta Vara criminal, autorizou a interrupção da gravidez, considerando que o respeito a conceitos religiosos e morais não poderia ser superior ao respeito pela preservação da vida de uma criança de 10 anos vítima de um crime.
A menina foi encaminhada para um hospital em Recife, em Pernambuco, para onde viajou acompanhada da avó e de uma assistente social, para realizar o procedimento clínico. Mas o que seria já um momento extremamente difícil tornou-se quase impossível de gerir quando Sara Giromini, uma militante de extrema-direita e que se apresenta como Sara Winter, revelou nas redes sociais, no domingo, não só o nome da criança como o nome da unidade hospitalar e do médico responsável pelo processo.
Mais uma violação
No passado domingo, a partir do momento em que foi conhecido o nome do hospital, dezenas de manifestantes evangélicos e de movimentos antiaborto reuniram-se à porta gritando palavras de ordem e condenando a interrupção da gravidez. Em vídeos partilhados na internet é possível ouvir os manifestantes a denominar o médico de "assassino" e ativistas pró-aborto que se concentraram no local garantem que a própria menina foi alvo das mesmas acusações. Os ânimos exaltaram-se e os manifestantes chegaram a tentar entrar à força no hospital, sendo travados pelo corpo de segurança. O procedimento acabou por ser realizado como previsto.
Segundo El País, a pressão dos grupos extremistas não se resumiu à porta da unidade hospitalar. Já no início de agosto, quando o caso foi revelado junto de alguns grupos religiosos, houve ativistas que se deslocaram à casa da família, tentando pressionar a avó para que o aborto não fosse levado por diante. Entre eles estava Pedro Teodoro, pré-candidato a vereador pelo PSL na cidade de São Mateus, escreve o jornal. A família apresentou queixa contra Teodoro por este ter divulgado o nome da criança no Facebook e ainda por ter entrado no quintal residência, exercendo pressão psicológica sobre a avó. Na nota de ocorrência a que o El País teve acesso, registada há precisamente uma semana, a senhora terá até desmaiado após a invasão e foi preciso expulsar Teodoro à força. Ainda assim, este manteve-se do lado de fora da residência, a rezar sobre "o facto". E Teodoro não terá sido o único a pressionar a família, com os jornais a relatar que em pelo menos duas ocasiões houve ativistas desconhecidos a interpelá-los.
Já na segunda-feira, um dia após os tumultos no hospital, a Justiça determinou que as redes sociais apagassem o nome da menor ao abrigo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves – que tinha chamado a atenção sobre o caso logo no dia 10 – veio a público pedir que fosse apurada a proveniência da fuga, negando que o nome da criança e do hospital tivesse sido vazado pelo seu ministério. Damares Alves, que já tinha, recorda A Gazeta, convidado Sara Winter para assumir a coordenação nacional de políticas à maternidade do seu ministério, e que segue nas redes sociais um dos movimentos antiaborto envolvidos nas manifestações, demarca-se do sucedido. "Salienta-se que os técnicos do ministério não sabiam o nome da criança, nem o endereço da família", disse o ministério de Damares Alves em comunicado citado pelo menos jornal, onde é ainda referido que o ministério soube do caso após uma denúncia que chegou por telefone.
Duas investigações
Entretanto, o MP abriu um inquérito ao caso e na quarta-feira pediu uma indemnização de 1,32 milhões de reais (200 mil euros) a Sara Winter por ter revelado os dados da menina. Para o MP, a militante de extrema-direita "expôs a criança e a sua família, em frontal ofensa a toda a ordem jurídica protetiva da criança e do adolescente, conclamando seguidores a manifestarem-se [contra o aborto]", para além de ter violado o dever, previsto constitucionalmente, "de a sociedade assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito […] à dignidade e ao respeito". Para Fagner Rodrigues, o procurador responsável pelo processo, a decisão de Sara "está incluída numa estratégia mediática de viés político sensacionalista, que expõe a triste condição da criança de apenas 10 anos de idade". As redes sociais de Winter foram, por agora, apagadas.
Não é a primeira vez que Sara Winter se vê a braços com a justiça. A militante do PSL é das líderes do grupo 300 do Brasil, um movimento de extrema-direita que apoia Jair Bolsonaro e cujos membros têm o costume de andarem armados. Num perfil traçado pela piauí é recordado o passado de Winter, que embora hoje se assuma como antiaborto já foi uma feminista radical e já realizou, segundo contou o irmão da mesma à revista, vários procedimentos de interrupção de gravidez. Já foi presa sob acusação de divulgação de fake news e de estar a ser subsidiada, entre outros crimes, em junho deste ano, numa altura em que preparava uma ação contra Supremo Tribunal Federal. Ficou, então, em prisão domiciliária.
Já o tio da criança acabou por ser detido no Estado de Minas Gerais na terça-feira e enfrenta agora uma pena que pode ir até 15 anos de prisão. "Que sirva de lição para aqueles que insistem em praticar um crime brutal, cruel e inaceitável desse tipo", escreveu nas redes sociais o governador do estado brasileiro do Espírito Santo, Renato Casagrande, após a detenção.
No Brasil, o caso reacendeu a discussão sobre a lei do aborto, que não é atualizada há 80 anos e é considerada muito restritiva por parte da população. Já outro setor continua a condenar a prática, mesmo que, neste caso, tenha estado em causa a vida de uma criança de dez anos vítima de um crime: há menos de meia dúzia de dias, o presidente Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, D. Walmor Oliveira, considerou que a menina tinha cometido um "um crime hediondo e inexplicável".