por Mário Crespo
Primeiro Ato
Um espetro assombra a democracia em Portugal – o espetro da autocensura no jornalismo.
O perigoso argumentário que está a ser propalado por zelotas de boas-práticas jornalísticas onde se fala de ‘divulgação ilegal’ de notícias e de ‘não-vale-tudo’, anuncia mais do que uma deriva para o controlo oficial da informação. Na verdade, o que se passou nos últimos dias, diz-nos que o poder político já comanda muito do que hoje vemos, ouvimos e lemos e que está a tentar orientar a opinião publica nos sentidos que acha que lhe são favoráveis.
Se uma imagem vale mil palavras, os sete segundos da diatribe de António Costa contra os médicos descrevem-no melhor do que tudo o que possa ser escrito sobre o homem que governa Portugal.
Quando o primeiro-ministro fala de ‘médicos’ como ‘gajos’ ‘cobardes’ emite uma declaração crucial para contextualizar a sua atitude para enfrentar os múltiplos problemas de saúde pública do país em pandemia. O grupo de jornalistas que o entrevistou devia ter-lhe pedido imediatamente um comentário sobre os fundamentos de tão violento destrato. Nunca por nunca poderiam ignorá-la, como o tentaram fazer os responsáveis editoriais do Expresso.
Note-se bem que não houve nenhum caso de ‘off-the-record’. De resto, compromete muito o desempenho jornalístico, a falta de perceção que a classe jornalística portuguesa (se é que existe) está a mostrar sobre o conceito. O ‘off-the-record’ é o entendimento entre repórteres e os objetos de notícia onde o único compromisso eticamente possível é salvaguardar o anonimato da fonte. Nunca pode ser invocado para obliterar conteúdos ao sabor da conveniência dos entrevistados. Divulgar matéria noticiosa é a obrigação jornalística. Sem a divulgação inconveniente de conteúdos noticiosos não teria havido conhecimento do escândalo de Watergate, das infâmias da Casa Pia, da roubalheira no BPN ou das irregularidades nas contas de Sócrates. Na verdade, sem a divulgação dos conteúdos obtidos por trabalho jornalístico, não há democracia. Não divulgar o que Costa disse sobre os médicos seria um ato de censura.
Uma situação de entrevista (tanto mais na residência oficial do primeiro-ministro) é o mais formal dos atos de colheita de informação que pode haver numa democracia. Tudo o que for dito é registo público. Os jornalistas não se podem comportar aqui como confidentes dos estados de alma de um entrevistado grosseiro, como foi o caso da equipa do Expresso a avaliar pela bondosa entrevista que conduziram que só fez notícia a sério na parte que não queriam divulgar.
Quando há quatro anos António Costa, por causa de um deslize de linguagem inconsequente, empurrou João Soares para fora do seu Gabinete, justificou-se chamando os media e dizendo: «(…) recordei aos membros do Governo que, enquanto membros do Governo, nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo e, portanto devem ser contidos na forma como expressam as suas emoções.» Mais adiante nesta mesma declaração, que foi o equivalente à punhalada nas costas dada durante um abraço fraterno com que Macbeth assassina o seu amigo Banquo, António Costa referiria a prudência e o bom senso que é necessário ter «(…) nestes espaços comunicacionais que hoje não são de conversa privada nem reservada tornam-se, naturalmente, públicos.» Prudência e bom senso que lhe faltaram neste contacto com jornalistas onde seguramente não se portou como o mais importante membro do Governo. Mas, enfim, provavelmente Costa disse aquelas coisas porque se sentiu muito à vontade com jornalistas do Expresso. A entrevista denota isso, particularmente na forma irada e brusca como Costa descreveu para os seus venerandos, obrigados, assustados e tão passivos entrevistadores o entendimento absurdamente restritivo que tem das atribuições da Ordem dos Médicos: «(…) as Ordens não existem para fiscalizar o Estado! Ponto final!») E eles ficaram-se. E mudaram de assunto.
Segundo Ato
António Costa é hoje primeiro-ministro de um estranho Gabinete formado por gente que amaldiçoa a vida pública portuguesa desde José Sócrates. Gente que serviu com empenho o ‘animal feroz’ durante o Freeport. Que andou com Soares, Guterres e Sampaio durante a Casa Pia e, já agora, gente que comprou meia dúzia de Kamov que não voam enquanto o país arde. E é também um homem com um nervo e calculismo raros. Testemunhei isso a 27 de maio de 2014 quando foi inaugurado na Ribeira das Naus um discreto monumento a Maria José Nogueira Pinto.
António Costa era presidente da Câmara de Lisboa. Fez um lindíssimo discurso exaltando a figura de Maria José e o seu influente papel na vida portuguesa. Jaime Nogueira Pinto fechou a cerimónia com palavras de saudade que comoveram todos e nos deixaram no silêncio sem jeito das recordações que doem mesmo. Foi neste ambiente de soturno mutismo coletivo que António Costa dobrou as duas folhas A4 do seu elogio fúnebre, meteu-as no bolso de um amplo casaco de alpaca cinzenta clara, compôs a gravata, apertou a mão a dois ou três dos presentes, afastou-se uns dez metros do monumento e acenou às três câmaras de TV que estavam a cobrir a inauguração que correram para ele enquanto jornalistas estagiários no habitual frémito mediático estenderam microfones ansiosos.
Teriam passado uns cinco minutos desde que António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, tinha carpido um esgaçado e lacrimejante elogio fúnebre a uma pessoa excecional quando de costas para o monumento a Maria José Nogueira Pinto, anunciou que se ia candidatar à liderança do Partido Socialista declinando uma litania violenta contra o Secretariado de António José Seguro. Já se sabia que Costa planeava esta afronta, mas não se sabia quando tomaria uma atitude pública. Escolheu o dia do elogio fúnebre a Maria José Nogueira Pinto.
Ao ver isto vieram-me à cabeça as palavras de Miguel Torga num comentário que fez depois de conhecer um distinto socialista que em tempo esgravatou a liderança do PS e que acabaria por atingir gloria in excelsis nas alturas da vida publica, urbi et orbi : «O rapaz fala bem, mas não presta». A saber: o relato dessa conversa tida no consultório do Dr. Adolfo Correia da Rocha em Coimbra foi-me feito ‘off-the-record’.