Foi a partir de Wakanda, o reino ficcional que serve de pano de fundo a Black Panther (Pantera Negra, 2018) que Chadwick Boseman se tornou num símbolo. Naquele que foi o primeiro filme da Marvel em que o super-herói era um homem negro, Chadwick tornou-se um símbolo para milhões de crianças negras que, pela primeira vez, puderam encontrar a representatividade da sua cor de pele numa personagem do género. O filme rompia outros paradigmas: é que em vez de colocar os EUA como os salvadores do mundo perante um cataclismo iminente, coube a essa civilização imaginada de Wakanda, retratada como um lugar perdido no terceiro mundo, o papel de evitar um desaire. Todo o elenco e produção do filme eram formados por negros, e mesmo nessa altura o ator que seria o coração do projeto e que já sofria de cancro não partilhou com os colegas os desafios extra que enfrentava. «Só quando a família lançou o comunicado é que percebi que viveu com a doença durante todo o tempo em que eu o conheci (…) Ele protegeu quem trabalhava com ele do seu sofrimento, isto porque era um cuidador, um líder, um homem de fé, dignidade e orgulho», afirmou o realizador Ryan Coogler após a partida do ator. Boseman morreu na passada sexta-feira, aos 43 anos, em Los _Angeles, depois de uma longa luta contra um cancro do cólon, diagnosticado há quatro anos e que o obrigou a conciliar alguns dos mais importantes projetos cinematográficos da sua carreira – entre os quais Marshall – Igualdade e Justiça, Da 5 Bloods – Irmãos de Armas, Ma Rainey’s Black Bottom de August Wilson – com os tratamentos. «O Chadwick foi diagnosticado com cancro do cólon em estádio III em 2016 e lutou com ele durante quatro anos, à medida que progrediu para uma fase terminal», dizia a nota publicada no sábado pelos seus representantes no Twitter. A_curta mensagem quebrou recordes, tornando-se num dos tweets com mais interações de sempre na rede social.
E se o ator optou pela privacidade e manteve a doença oculta até ao fim, é agora difícil não olhar para o que tinha partilhado com os fãs até agora com outros olhos. Durante as sessões de promoção de Black Panther, numa conferência, não conseguiu esconder as lágrimas quando revelou a história de dois miúdos, fãs do filme e doentes oncológicos, cujo desejo era ver a película antes de morrerem. «Eles e os pais diziam-me que estavam a tentar aguentar até que o filme fosse lançado», partilhou, contando que nenhum dos dois tinha conseguido realizar esse desejo. Nessa altura, o ator já conhecia bem os meandros e as manhas da doença que ele próprio enfrentava.
A morte precoce do artista deixou um rasto de comoção. «Como é que se honra um rei?», questionava a também atriz Danai Guirra na homenagem que deixou ao colega. «Faltam-me as palavras. Nada parece fazer sentido. Fiquei sempre encantada com o quão especial o Chadwick era. Uma pessoa com um coração tão puro, profundamente generosa e divertida», recordou. No domingo, a ABC organizou um programa especial em memória do ator ao qual chamaram ‘Tributo para um Rei’ reuniu uma série de estrelas que recordaram o ator, entre as quais Elizabeth Olsen, Robert Downey Jr., Mark Ruffalo ou Oprah Winfrey, que reconheceu o enorme talento de Boseman e a sua «alma gentil», valores igualmente referidos por Scarlett Johansson .
Também a candidata democrata à vice-Presidência norte-americana, Kamala Harris, deixou uma nota de pesar pela partida do ator, recordando que ainda há pouco tempo Boseman tinha celebrado a sua nomeação para a corrida nas presidenciais e apelado aos seus seguidores para votarem.
Do grande ecrã a estátua?
Nascido a 29 de novembro de 1976 em Anderson, na Carolina do Sul, filho de afro-americanos – a mãe era enfermeira e o pai mantinha um negócio como estofador – Boseman formou-se na Universidade Howard, em Washington, em Artes Plásticas. Já nessa altura procurava pisar os palcos o mais possível e, para lá da atuação, gostava de escrever peças e argumentos. Na faculdade arranjou forma de rumar a Londres para participar no conceituado Oxford Mid-Summer Program da British American Drama Academy e, de volta aos EUA, foi viver para Brooklyn no início da sua carreira. Nessa altura, chegou a dar aulas a jovens no Schomburg Junior Scholars Program, um projeto no Harlem destinado à investigação sobre a cultura negra. Mudou-se para Los Angeles em 2008 e, a partir daí, a sua carreira disparou e, para lá de outras produções de Hollywood, entrou em blockbusters como Deuses do Egito (2016) ou Avengers: Infinity War (2018) e Avengers: Endgame (2019).
Numa altura em que as questões raciais voltam a estar na ordem do dia nos EUA – terão, alguma vez, saído da agenda? – o legado que deixou poderá vir a ter outro tipo de implicações. No cinema, para lá do seu papel em Black Panther, Boseman deu vida à história de afro-americanos como James Brown (em Get on Up, realizado por Tate Taylor em 2014), Jackie Robinson e Thurgood Marshall. Por tal, e pela ligação e contribuições que deu à cidade de Anderson, correm agora duas petições que já recolheram milhares de assinaturas para que seja colocada uma estátua do ator da cidade. E não num sítio qualquer: no lugar onde, atualmente, se ergue o memorial da Confederação, um monumento que homenageia os soldados que, em linhas muito simplistas, lutaram pela manutenção da escravatura durante a Guerra Civil . «A comunidade deve unir-se para honrar alguém que de Anderson, na Carolina do Sul, foi capaz de mudar a indústria cinematográfica. Ele abriu as portas a muitos jovens negros com os seus papéis principais em filmes como Black Panther ou Marshall. É apenas natural que a sua cidade natal homenageie o que ele fez. Não é necessário haver controvérsia política nesta decisão», diz o texto de uma das petições.