[crónica publicada na edição do SOL de 25 de abril de 2020]
Confinamento e amor
por Vicente Jorge Silva
Nunca li Enamoramento e Amor, o best-seller de Francesco Alberoni, mas a sonoridade da expressão e aquilo que ela própria sugere levaram-me a trocar enamoramento por confinamento, porventura a palavra mais obsessivamente repetida nos dias que correm, e enquadrar assim a minha própria e muito pessoal experiência num apartamento em Lisboa, acompanhado apenas pela mulher com quem estou casado há mais de vinte anos. Aviso prévio: este depoimento não pretende servir de exemplo a quem quer que seja, até porque o autor tem consciência da situação de privilégio em que vem desfrutando a sua experiência. Mas num momento de tanta desorientação e polémicas por vezes absurdas (nomeadamente sobre a necessidade ou não de confinamento para evitar o contágio do coronavírus), julguei oportuno partilhar, se for possível, o sentido dessa experiência.
Vivo num apartamento demasiado amplo para ser habitado por apenas duas pessoas, mas quando o estado de emergência começou só a minha mulher e eu aqui nos encontrávamos, enquanto a restante família se dispersava por vários confinamentos em Lisboa e na Madeira. Receámos os constrangimentos dessa ‘prisão’, até porque estaríamos juntos vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, com excepção das idas esporádicas ao supermercado ou à farmácia da nossa rua, algumas vezes em comum. Outro pormenor pressionante e propício à ansiedade: faço parte dos chamados «grupos de risco», por causa da idade (74 anos) e da doença (tenho cancro).
Aconteceu porém que, contrariamente aos nossos receios, a experiência do confinamento iria revelar-se muito enriquecedora para a minha mulher e para mim. Através das tarefas domésticas que fomos encetando, nomeadamente as da limpeza, arrumação e organização da casa (tive a oportunidade de pôr em ordem os meus papeis consumidos pela poeira do tempo), dos cozinhados ou da escolha dos menus dos ‘take away’, recuperámos o domínio de um espaço, o do que tradicionalmente se chama lar, que tantas vezes nos escapava ou tratávamos com excessiva ligeireza (acentuada pelo facto de, com frequência, estarmos separados pelo oceano muito mais tempo do que desejávamos, ela no Funchal e eu em Lisboa).
Mas porventura o que nos tem marcado mais intensamente é a experiência de partilharmos prazeres a que não dávamos a importância devida, como a de ler com mais vagar, variedade e detalhe, de ver filmes antigos ou séries na TV (descobrindo algumas como a galesa Hinterland), de ouvir música ou dançar – chegámos a repetir não sei quantas vezes a admirável e pungente Atrás da Porta, cantada por Elis Regina e escrita por Chico Buarque (de quem li, entretanto, um decepcionante romance, Essa Gente, decepção essa logo compensada, porém, com o desconcertante mas genial Operação Shylock de Philip Roth).
Poderia dizer-se que esta experiência não acrescentou nada de diferente à vida de um casal habituado a ser feliz ao longo do tempo. Só que a nova e eventualmente asfixiante rotina do confinamento comportava riscos desconhecidos. O desafio foi ultrapassá-los e virá-los a nosso favor, intensificando a felicidade de viver juntos, desfrutando em comum o tempo de convivência a que fomos obrigados.
Quer isto dizer que este privilégio raro significa uma celebração do confinamento? De modo nenhum, até porque há um prazo indefinido para além do qual o prazer se pode transformar em…desprazer. Além disso, o nosso exemplo não tem pretensões pedagógicas nem ignoramos as dificuldades, a ansiedade e até o desespero que o confinamento provoca a muita gente, nomeadamente entre os mais solitários, mais idosos e mais pobres. Seja como for, quis deixar aqui um testemunho optimista e verdadeiro de que se pode viver o confinamento com amor.