China/Estados Unidos – PortugaL. A diplomacia pública do embaixador Glass

Estabelecer um paralelo, quer em termos do tema, quer do modo, é uma demonstração de ignorância e de estupidez, que nem o acrisolado anti-trumpismo de alguns opinionmakers pode justificar. Aliás, a candidata Ana Gomes, comentando o assunto, foi clara e independente na sua análise, ao referir-se à China como uma potência totalitária governada por um…

por A.P.G

No Sábado, 26 de Setembro, o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, George Glass, deu uma entrevista que causou alguma celeuma ao alertar o Governo e a opinião pública portuguesa para as consequências do domínio por capitais e interesses chineses de empresas, sobretudo nos sectores tecnológicos, de infraestruturas e financeiros. O embaixador, um embaixador “político”, isto é, não de carreira, referiu-se especialmente às consequências no quadro da aliança NATO e da defesa militar. O representante do Governo americano em Portugal falou particularmente da nova geração tecnológica do G5 e à possibilidade da chinesa Huawei vir a participar no G5 em Portugal. Nesse caso, os Estados Unidos poderiam alterar alguns parâmetros na relação bilateral de defesa e segurança, bem como no quadro da NATO. Também a possibilidade de gestão do porto de Sines por uma empresa chinesa poderia influenciar negativamente a decisão sobre a distribuição de gás natural americano para a Europa por aquele porto.

O MNE, Augusto Santos Silva, teve uma reacção diplomática contida, em que – sublinhando a salvaguarda da soberania nacional nas matérias em discussão – afirmou que “não considerava as declarações do Embaixador uma ingerência nos assuntos internos portugueses” e que as boas relações entre Lisboa e Washington persistiam. Mais tarde, o Presidente da República, reafirmando a ideia de que o país é soberano nas suas decisões, seguiu a mesma linha.

Mas alguns sectores da opinião pública mais à esquerda não deixaram de qualificar as afirmações de Glass como ingerência e, mais, compará-las ao famoso Ultimato britânico e, 1890, faz agora 130 anos, a propósito do “Mapa Côr de Rosa”.

Só por ignorância ou má fé – ou as duas – se pode estabelecer tal paralelo: o que estava em jogo em 1890 era um conflito bilateral causado pelos direitos a uma área territorial entre Angola e Moçambique, que os Portugueses tinham ocupado através de diversas expedições científicas e militares, e o interesse inglês em dominar esse espaço, mirando a rota Cabo-Cairo. Era um conflito bilateral de interesses entre dois aliados, que Londres resolveu à bruta. O que os Ingleses, através do Governo de Lord Salisbury, fizeram então, foi intimar o Governo de Lisboa a abandonar a sua pretensão e a desocupar as áreas referidas sob pena de corte de relações diplomáticas e de a Royal Navy bombardear Lisboa.

Estabelecer um paralelo, quer em termos do tema, quer do modo, é uma demonstração de ignorância e de estupidez, que nem o acrisolado anti-trumpismo de alguns opinionmakers pode justificar. Aliás, a candidata Ana Gomes, comentando o assunto, foi clara e independente na sua análise, ao referir-se à China como uma potência totalitária governada por um partido único, e cujo domínio económico precisa de ser escrutinado.

O que o embaixador Glass disse foi que se houver certas escolhas estratégicas empresariais, como a aceitação da Huawei na nova geração de conexões Internet 5G, os Estados Unidos vão restringir a cooperação com Portugal em matérias de Segurança e Defesa. E podem tomar outras opções comerciais quanto ao gás natural. A Huawei é a segunda empresa do mundo em fabrico de telemóveis; foi fundada em 1987 por um militar, Ren Zhengfei. Este background do fundador e executivo, membro do Partido Comunista, é um dos argumentos invocados por Washington para querer banir a Huawei das novas redes de 5G. O argumento é que os chineses, estando dentro dos sistemas, podem espiar e tomar conhecimento de dados sensíveis à segurança. O Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia já aderiram ao boicote americano à Huawei. Vários países asiáticos assinaram contratos com a Huawei, mas o Japão baniu qualquer participação chinesa. Na Europa Continental, a maioria dos países mantém-se indecisa. Na Alemanha a questão está em aberto e o embaixador da China, perante a questão das restrições, declarou que Pequim retaliará, por exemplo, impedindo a exportação de carros alemães para a China. Glass foi mais diplomata.

Numa longa lista de recriminações entre Pequim e Washington, a  China utiliza o argumento do comércio aberto e os Estados Unidos das restrições impostas por razões de segurança. É neste pé, e só neste, que deve ser enquadrada a entrevista do Embaixador Glass. Comparar uma declaração pública sobre as consequências da realização de um negócio com a China, considerado como implicando riscos para a segurança da NATO e para a partilha bilateral de informações, com o Ultimato inglês de Janeiro de 1890, com ameaça de corte de relações diplomáticas e da Royal Navy a bombardear Lisboa, é bastante descabido.

Nas suas declarações, quer o Presidente Marcelo, quer o Ministro Santos Silva, salvaguardaram a posição portuguesa e o princípio de soberania nacional. E não parece que o Embaixador americano tivesse tocado nesse princípio. Limitou-se a falar das consequências comerciais, por razões de segurança, de uma opção também comercial. Está no seu direito de esclarecer o público português, para além dos canais diplomáticos, que, na diplomacia clássica, seriam os mais indicados.