Aos 12 anos de idade, Eugène Adrien Roland Georges Garros, estava muito atrapalhado. Atacado por uma fortíssima pneumonia, foi despachado para Cannes na esperança de que o clima ameno da cidade o ajudasse a recuperar._Terá sido nas tardes longas de inação que, ao deixar o olhar perder-se pelo azul inconfundível do Mediterrâneo, lhe brotou a ideia de voar por cima dele. Uma ideia que se tornou tão fixa que deixou de ser ideia e passou a ser uma obsessão.
Roland Garros, como gostam de dizer os seus compatriotas, viveu depressa, morreu cedo e foi um cadáver bonito, embora nesta questão já caiba o gosto de cada um em relação a cadáveres. No dia 5 de outubro de 1918, ou seja, na véspera do seu trigésimo adversário, ninguém sabia do seu paradeiro. Tinha voado em direção à frente de guerra e não dera mais notícias. E as notícias, quando chegaram, três dias mais tarde, a letra de imprensa no Le Petit Journal, não era agradáveis: «L’aviation française vient de perdre l’un de ses représentants qui l’ont le plus honorée avant et pendant la guerre, le lieutenant Garros qui, étant parti en reconnaissance au front le 5 octobre, n’est pas rentré à son escadrille». Seguia-se um elogio fúnebre de se lhe tirar o chapéu: «Garros ! Héros légendaire dont le nom embrasse à lui seul l’histoire de l’aviation depuis l’époque magique des tâtonnements jusqu’à l’ère glorieuse de la guerre aérienne!» As linhas amontoavam-se: «Garros! Campeão do circuito de Anjou, vencedor das nuvens, recordista da travessia do Mediterrâneo, aquele que, depois de 1910, fez com que o espaço obedecesse à sua vontade implacável!» Não foi bem assim, claro está, porque o céu levou a melhor na luta que Roland travou com ele. Mas de um panegírico esperam-se elogios e os elogios aí estavam para que ninguém pudesse esquecê-lo. E bem, porque fora um herói da I_Grande Guerra e só por muito pouco não saiu dela vivo.
Escrever sobre Roland Garros não é, como veem, escrever sobre ténis, a despeito de amanhã mesmo ter início a sua 124ª edição. Ou melhor: há que fazer contas. O conjunto de campos de ténis de Porte d’Autueil só viu a luz do dia em 1928, dez anos após a morte do aviador, graças sobretudo ao esforço e paixão do seu amigo e admirador, Émile Lesieur, antigo colega de Roland na HEC, École des Hautes Études Commerciales de Paris, que fora entretanto nomeado presidente do Stade Français que desenvolveu o complexo de forma a que pudesse ser digno dos grandes tenistas franceses, sobretudo os Quatro Mosqueteiros que venceram a Taça Davis, Borotra, Lacoste, Brugon e Crochet. Até então, o torneio do Grande_Slam era tratado simplesmente por Les Internationaux de France .
Hoje em dia é Roland Garros e ponto final. E não vale a pena andarem a esmiuçar o seu nome na história dos grandes tenistas da humanidade, como Madame Curie a escarafunchar na pechblenda para descobrir o rádio, porque Eugène não passou de um praticante amador e, segundo consta, meio desajeitado. Por outro lado, foi um revolucionário como piloto. Mal a Guerra de 14-18 teve o seu início, Roland Garros alistou-se na Força Aérea Francesa, tendo já como currículo muitas horas de voo. Tendo nascido em_Saint-Denis, não Saint-Denis dos arredores de Paris mas Saint-Denis capital da ilha da_Reunião, um departamento ultramarino francês perdido no meio do Oceano Índico, para lá de_Madagascar, veio muito criança para a Europa e não se deu bem com o clima já que os problemas pulmonares se tornaram uma constante. Na tentativa de reforçar a sua capacidade física tornou-se um ativo ciclista e um frequente jogador de futebol e de râguebi, não recusando, aqui e ali, uma partida de ténis. Aos 21 anos conheceu Ettore Bugatti, o homem que desenhou e fabricou os famosos automóveis italianos que, no início, devido à generosidade de um engenheiro alemão que se deixou encantar pelo estilo dos veículos, pôs à sua disposição a fábrica que possuía em Niederbronn, no Baixo-Reno, onde os primeiros modelo foram construídos. Envolvido nessa empreitada entusiasmante, Roland Garros iniciou uma curta carreira de vendedor de automóveis e ganhou aura de dândi ao conduzir o seu resplandecente Bugatti Type 12 pelas ruas de Paris, o primeiro em que os parisienses puseram a vista em cima e tinha a alcunha de Black Bess. A guerra vinha aí a caminho e a galope. As relações mudaram tão facilmente como as fronteiras. O nosso herói entusiasmara-se pela aviação em 1909, quando participou na Grande Semaine d’Aviation de la Champagne, em Sapicourt, perto de Reims. Afeiçoou-se a um monomotor chamado Demoiselle, uma série de aeronaves que tinham sido projetadas pelo pioneiro Santos-Dumond, e em breve era a feliz proprietário da licença de aviação n.º 147, passada pelas autoridades aéreas francesas em Julho de 1910. O jovem Eugène andava feliz como um passarinho. E fazia-lhes concorrência no céu.
Demoiselle e Blériot
Roland Garros percebeu que se queria participar em competições e estabelecer recordes, precisava de um aparelho mais potente. Trocou o seu Demoiselle por um Blériot XI, um modelo fabricado em França que ficara com o nome do primeiro piloto a atravessar a Mancha de avião, Louis Blériot, uma das grandes conquistas do seu tempo que levou o The_Daily Express a encher a sua primeira página com um berro de letras bem visíveis: «Britain is no longer an Island!» A bordo da sua nova máquina lançou-se em provas como a Paris-Madrid de 1911 e o Circuito Europeu (Paris-Londres-Paris) no mesmo ano, tendo conseguido o segundo lugar nesta última competição. Pelo caminho tornou-se no primeiro homem a voar a 3.950 metros de altitude, abrindo uma rivalidade notável com o austríaco Philipp von Blaschke e apaixonando os adeptos que seguiam as suas diatribes através da imprensa._Phillip atingiu os 4.360 metros e desequilibrou a balança para o seu lado. Eugène era persistente e não tardou a recuperar vantagem chegando aos 5.610 metros. Foi graças a essa perseverança que, no dia 23 de Setembro de 1913, já aos comandos de um bem mais veloz_Morane-Saulnier, cumpriu a primeira travessia do Mediterrâneo sem escalas, descolando de Fréjus-Saint Raphaël, no sul de França, e aterrando em Bizerte, na Tunísia. O voo teve início às 5h47 da manhã e durou sete horas e treze minutos, tendo Roland de se haver com uma série de problemas mecânicos ao longo do percurso que puseram em risco o empreendimento. Mas conquistara os galões de piloto excecional. As festas em sua homenagem levadas a cabo em Paris e em Marselha foram de arromba. O jornal L’Auto perguntava: «Que louco seria capaz de prever algo assim há seis meses?» A alta sociedade francesa abria-lhe os portões sagrados: tornou-se íntimo do poeta Jean Cocteau e da dançarina Isadora_Duncan. A I Grande Guerra estava aí para o elevar a ás da aviação. Ou não…
O Pecadilho de Roland…
Em Agosto de 1914, a notícia caiu como uma das bombas que devastavam as_Ardenas. Roland Garros estava morto! Fora abatido nos céus da Alemanha. E as páginas que se enchiam com os seus obituários recordavam a sua inestimável colaboração para a aviação militar: a instalação de metralhadoras frontais com um sistema de cálculo que permitia disparar por entre o movimento das hélices, dando uma vantagem tremenda no combate aéreo individual. A invenção era arriscada e, muitas vezes, as balas destruíam as hélices quando o aparelho se descoordenava, mas não deixou de ser uma evolução extraordinária. Dois anos mais tarde, deu-se o milagre. Eugène regressava ao mundo dos vivos, escapando aos algozes alemães, e voltando a apresentar-se no seu pelotão após um penoso cativeiro. No dia 14 de de Fevereiro de 1918, na companhia do tenente Anselme Marchal, ensaiou uma audaciosa e bem sucedida fuga do campo de prisioneiros onde estavam confinados e atravessaram a pé os campos da Holanda até encontrarem forma de ser transportados por mar até Londres.
Se a fama de Roland Garros em França já era robustamente sustentada, depois deste episódio ei-lo transformado num semi-deus: «O Homem Que Namorava as Nuvens», chamaram-lhe com boa dose de romantismo. O mito de ter sido o primeiro piloto a participar numa batalha aérea reacendeu-se. Em Agosto de 1914 teria atacado um zepelim alemão, abatendo a aeronave e matando os seus pilotos, episódio que os alemães se apressaram a desmentir e que nunca foi, de facto, confirmado. Eugène tinha os seus pecadilhos e o maior deles era o de abusar da imaginação para descrever as suas façanhas. Aliás, a sua queda para lá das linhas da frente de batalha acabaria por ser desastrosa. Incapaz de destruir o seu Morane-Saulnier da Esquadrilha MS26, como que entregou ao inimigo o segredo da artilharia sincronizada, algo que os engenheiros da Fokker trataram de agradecer, adaptando-a aos seus aeroplanos e reequilibrando a guerra pelos ares.
Entretanto, em França, o regresso de Roland prestava-se às mais estonteantes histórias. Havia quem jurasse que tinha trazido consigo da Alemanha, escondido no cabo de uma raqueta de ténis, um mapa pormenorizado de todos os campos de aviação inimigos o que não deixava de baralhar os pobres leitores que tentavam imaginar Eugène e o seu companheiro Anselme a atravessar as planícies da Flandres agarrados a um objeto tão surrealista naquelas condições. Michaël Guitard, o bibliotecário da Federação Francesa de Ténis, revelaria num documentário: «Garros e Marchal escaparam do campo destruindo uma rede de arame farpado e esconderam-se de imediato num cemitério próximo onde passaram a noite. O seu caminho através dos Países Baixos foi algo de heróico e sujeito aos perigos mais inconcebíveis!» Não restavam dúvidas: Roland era um moço estimado.
O descuido fatal
Todos os pilotos aliados tinham ordens expressas para destruir os seus aparelhos em caso de caírem para lá das linhas inimigas. Nesse tempo de inovações mecânicas quase diárias era importante manter o segredo e impedir que qualquer novidade fosse parar a mãos erradas. Nunca se soube ao certo, nem ele explicou, porque é que_Roland Garros não incendiou a sua aeronave. Um facto é indesmentível: o sistema de disparo sincronizado através do movimento das hélices foi explorado e muito aperfeiçoado pelo engenheiro aeronáutico holandês Anton Herman Gerard Fokker, conhecido por Anthony, que nasceu num lugar ainda mais exótico do que_Roland Garros, em Blitar, na ilha de Java, então pertença da Companhia Holandesa das_Índias Orientais. Anthony aplicou os ensinamentos que retirou do estudo do Morane-Saulnier de Roland aos seus Fokker Eindecker, monoplanos que viriam a tornar-se, em seguida, biplanos com o Fokker Dr.1 e triplanos com o Fokker D.VII. Foi um golpe terrível para a aviação aliada. E particularmente para Eugène Adrien Roland Georges Garros.
«Foi bom ter ressuscitado do mundo dos mortos», disse Roland numa entrevista mal voltou a França, «mas agora preciso de recuperar o tempo que perdi». Opôs-se tenazmente à proposta do Ministério da Guerra que lhe quis dar um posto de comando em terra como consultor técnico da Força Aérea Francesa. Queria voltar rapidamente aos céus até porque, ao contrário do que ele próprio afirmava, só lhe era reconhecido que abatera quatro aviões inimigos em combate e a regra exigia cinco para que pudesse ser considerado um às. Uma ligeira inveja separava-o do seu colega Adolphe Pégoud que, com seis inimigos deitados abaixo, se tornara o primeiro às da aviação de França.
No dia 5 de Outubro de 1918, Roland Garros sobrevoava a cidade de Vouziers, nas Ardenas, quando se viu frente a frente com Hermann Habich, tenente da Feldflieger Abteilung, esse sim, um às alemão, que se gabava das suas cinco vitórias aéreas ao comando do Fokker D.VII Albatros, a última das quais cinco dias antes, nos céus de Maure. Habich, que viria a ser, igualmente, um herói da II_Grande Guerra não teve contemplações pelo rapaz que beijava as nuvens. O avião de Roland caiu a pique sobre a aldeia de Somme-Py e a dor voltou a encher páginas de jornais: «Il était plus grand que tout! La noblesse de ce cœur, la beauté de ce caractère. Garros n’est pas revenu !», choravam-no. «Pour la seconde fois, il est tombé chez l’Allemand, mais nous nous refusons à croire que nous ne reverrons pas ce roi des rois de l’espace».
Quando os primeiros tenistas entram nos courts de Roland Garros, não dirigirão – sobretudo por ignorância – sequer um leve pensamento para o moço que morreu por querer voar. Eugène foi um ciclista de qualidade, venceu mesmo o Campeonato Interescolar em Pista, e ainda bateu umas bolas amarelas com o seu camarada Émile Lesieur, um dos primeiros râguebistas internacionais pela França e o primeiro jogador francês a marcar um ensaio no Torneio das_Cinco Nações. A amizade entre ambos foi fulgurante, atravessou o tempo de estudos, fortificou-se na hora em que ambos se alistaram na força aérea. Lesieur nunca ultrapassou por completo a morte prematura de Roland e fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar que o nome do amigo não seria esquecido. Nem que para isso tivesse de exigir que o complexo de campos criado em 1920 e onde se passariam a disputar os torneios franceses do Grand Slam fossem batizados como_Stade de Roland Garros. O escritor vietnamita Vũ Trong Phung também deixou Eugène para sempre impresso nas páginas de um dos seus romances, Dumb Luck, uma crítica profunda à classe-média do país e que foi proibido pelo Partido Comunista.
A sua terra natal quis prestar-lhe homenagem e, com toda a propriedade, o aeroporto internacional de Saint-Denis, na ilha da Reunião, tem o nome de Aeroporto Roland Garros. E quem passa por Bizerte, uma cidade portuária rodeada de praias de areia clara um pouco a norte de Tunis, não deixará de reparar na praça que marca o lugar onde aterrou, vindo de França, e completou o maior dos seus feitos. Feitos esses que nunca tiveram nada que ver com ténis.