Em fevereiro de 1998, um jovem estagiário do FBI, acabado de sair da academia de Quântico para um escritório em Nova Iorque, sentou-se a ler um jornal árabe, publicado em Londres. Osama Bin Laden, um saudita abastado, pouco conhecido do público, assinara uma fatwa (ou decreto religioso islâmico) em que apelava ao assassinato de americanos e dos seus aliados, onde quer que se encontrassem. Preocupado, Ali Soufan escreveu um memorando aos seus superiores no FBI. Não sonhava que acabaria a dedicar boa parte da sua carreira ao assunto. Ou que estaria no centro da investigação ao atentado terrorista mais mortífero da história da humanidade, a 11 de setembro de 2011.
«Na universidade, o foco da minha tese foi o papel de atores não-estatais na estabilidade regional do Médio Oriente. Olhei para atores como o Hezbollah ou o Hamas. Mas, ao mesmo tempo, o Bin Laden capturou a minha atenção na altura em que estava no Sudão, a dar entrevistas. A primeira vez que ouvi falar dele foi numa dessas entrevistas, e era óbvio que ele tinha um plano. E tinha os meios para o concretizar, bem como muitas pessoas à volta dele que combateram no Afeganistão e tinham essa capacidade», recorda Ali Soufan, a partir da sua casa em Nova Jersey, ao telefone com o b,i. «Intenção mais capacidade. É isso que uma ameaça é, certo?».
Já há uns largos anos que Soufan está reformado do FBI, depois de conduzir investigações e interrogatórios um pouco por todo o mundo, desde Londres, Marrocos, Iémen e no Afeganistão. Entretanto, viu parte da sua carreira tornar-se a intriga do livro The Looming Tower (2006), adaptado numa série televisiva em 2018, onde Soufan foi retratado pelo ator Tahar Rahim.
Pelo meio, em 2008, durante a Administração de Barack Obama, o antigo agente testemunhou perante o Congresso contra o uso de tortura na Guerra ao Terror. As críticas valeram-lhe a inimizade da CIA, que em 2011 censurou o seu livro The Black Banners: The Inside Story of 9/11 and the War Against al-Qaeda. As páginas foram riscadas a preto, o seu conteúdo considerado confidencial pelas secretas, um risco para a segurança nacional, apesar de o próprio FBI ter aceitado a publicação. Contudo, no mês passado, após anos de litigação judicial, o livro de Soufan finalmente chegou integralmente às bancas.
«Infelizmente, quando escrevi o livro, tudo o que mostrasse que as técnicas de interrogatório avançadas – ou tortura – não funcionavam foi cortado. Tudo o que mostrasse que não conseguimos qualquer informação relevante quanto a conspirações em curso com base waterbording e técnicas do género. E tudo o que mostrasse como de facto obtivemos informação que salvou vidas também foi cortado», lamenta. «Foi frustrante quando isso aconteceu. Mas mais tarde, apercebi-me que, na prática, isso ajudou significativamente. Porque no momento em que eles declararam a informação confidencial, ainda para mais quando descrita por um agente que estava lá, admitiram que era verdadeira».
Uma estranha felicidade
Nascido em Beirute, em 1971, uns anos antes de estalar a guerra civil, Ali Soufan rapidamente aprendeu o que era o terror, agarrado às escadas de casa enquanto bombas caíam no seu bairro, à espera que o tiroteio do outro lado da rua se silenciasse. Cresceu a ver Beirute ser esventrada por confrontos entre milícias e intervenções militares, enquanto o seu pai, um jornalista sunita, lhe contava histórias dos tempos em que a cidade era conhecida como a Paris do Médio Oriente.
«É incrível como te habituas, como normalizas o que acontece à tua volta. Olho para a minha infância como uma infância feliz. Divertíamo-nos, íamos à escola, acampávamos, fazíamos todas as coisas que as pessoas normais fazem. E nunca te apercebes do ambiente em que vives, quão prejudicial é», recorda Soufan. «Quando estás a crescer, simplesmente não conheces melhor. Há guerra, tu escondes-te até acabar e depois vais à praia. Era estranho. E passava-se o mesmo com muitas outras crianças», conta.
«Muitas pessoas lhe dirão que o povo libanês tem essa capacidade de ultrapassar o seu ambiente. Eu posso garantir-lhe isso», assegura. «Não sou bom a psicoanalisar-me, mas creio que quando estava em áreas como o Afeganistão ou no Iémen para mim foi fácil adaptar-me a esse ambiente. Tenho a certeza de que essa experiência ajudou».
Do caos do Líbano, a família Soufan partiu para a Pensilvânia, nos Estados Unidos, quando Ali tinha 16 anos. Desde então nunca esqueceu a gratidão ao país que o acolheu. «Finalmente percebi o significado de paz e tranquilidade», resume. Viria a formar-se em Relações Internacionais, com planos de seguir a via académica no Reino Unido. Mas antes enviou o currículo para o FBI, mais pela curiosidade de saber se entrava ou não. Foi surpreendido por uma carta de aceitação, em 1997, e seguiu para Quântico, na Virgínia.
Uma mudança de paradigma
Hoje parece impensável, mas a 11 de setembro de 2001 Ali Soufan era um dos únicos oito agentes fluentes em árabe do FBI, e o único na divisão de Nova Iorque. A verdade é que o extremismo islâmico sunita ainda não era o foco primordial do contraterrorismo norte-americano. A grande preocupação de Washington eram grupos nacionalistas, supremacistas brancos ou extremistas xiitas.
«A mudança começou muito antes do 11 de Setembro. O 11 de Setembro não surgiu do nada. Antes disso, já havia muitos grupos que tinham saído do Afeganistão após combater os soviéticos e que regressaram a casa. Alguns líderes destes grupos eram procurados nos seus países, no caso do Egito, da Líbia, entre outros. Por isso, começaram a criar uma subcultura que, mais tarde, se desenvolveu na Al-Qaeda», relembra Soufan. «Tinhas atentados até na Arábia Saudita, imagine-se. E vimos o ataque de 1993, aqui nos EUA, contra o World Trade Center. Depois houve conspirações para destruir pontes, túneis e edifícios em Nova Iorque. Eventualmente, a Al-Qaeda começou a fazer ataques diretamente, nas embaixadas norte-americanas na África Oriental, contra o USS Cole. Foi uma tendência que surgiuao longo dos anos. Infelizmente, ninguém nos EUA e no ocidente tomou atenção de perto a isso», afirma.
«Na minha própria cadeia de comando, as pessoas estavam atentas», salienta o antigo agente do FBI, recordando o seu mentor, John O’Neil, então diretor da divisão de Segurança Nacional em Nova Iorque. Carismático, determinado, bonacheirão, fã de boa comida e bebida, O’Neil foi responsável pelas investigações iniciais à Al-Qaeda, acumulando adversários na CIA e no Governo federal. Caído em desgraça após lhe roubarem uma mala com documentos confidenciais, O’Neil reformou-se do FBI, optando por uma carreira mais tranquila como diretor de segurança do World Trade Center, em 2001. Dois dias depois estava no seu novo gabinete, no 34.º andar da Torre Norte norte, quando esta foi atingida pelo voo 11 da American Airlines. Saiu do edifício, ligou ao filho a dizer que estava bem e voltou a subir, para ajudar na evacuação. Nunca mais foi visto com vida.
«A minha equipa em Nova Iorque e a liderança sempre tomaram atenção. O problema não foi tanto no aparelho de segurança nacional como na liderança política. A liderança política não queria reconhecer que os jiadistas eram uma ameaça. Em geral, a opinião era que estes tipos estavam connosco, eram nossos aliados, lutaram contra os soviéticos no Afeganistão. E todas as coisas más que ouvias sobre eles vinham dos seus países de origem, que não gostavam nada deles», diz Soufan. «Mas depois dos ataque às embaixadas da África Oriental, as pessoas começaram a prestar atenção».
Investigação além fronteiras
Quando as embaixadas norte-americanas em Nairóbi e Dar es Salaam foram alvo de dois ataques simultâneos, a 7 de agosto de 1998, matando um total de 224 pessoas, poucos meses após o memorando de Soufan sob Bin Laden, o agente novato do FBI ficou para trás, no escritório de Nova Iorque a fazer traduções e analisar informação, enquanto O’Neil seguia para o terreno. Mais tarde, o próprio Soufan faria o mesmo, primeiro para Londres, onde a Al-Qaeda mantinha o seu gabinete de imprensa, a primeira das suas muitas missões no estrangeiro.
O desafio do FBI, ao contrário da CIA, não era apenas obter informação ou eliminar operativos, mas sim recolher provas com qualidade suficiente ser utilizadas num tribunal dos EUA. Talvez o maior desafio de Soufan tenha sido no Iémen, que se viria a descobrir ser o ponto central da rede de apoio da Al-Qaeda.
A 12 de outubro de 2000, um pequeno barco de pesca cheio de explosivos rebentou no porto de Aden, rasgando o casco do destroyer americano USS Cole, matando 16 marinheiros que estavam a almoçar. Momentos depois, Soufan, com 29 anos, recebeu uma mensagem no seu pager. Nessa mesma tarde, arrancou de Nova Iorque para o Iémen, para liderar a investigação. Deparou-se com um Estado pouco amigável, infiltrado pela Al-Qaeda até às mais altas instâncias, estando a sua equipa proibida de levar armamento pesado, por receio de ofender as autoridades. Certa vez, durante a noite, deram pelo hotel onde estavam cercado por jiadistas armados até aos dentes, enquanto os militares iemenitas observavam, desinteressados.
«Havia muita coisa a acontecer. Definitivamente, a prioridade número um é a segurança da tua equipa. Mas ao mesmo tempo tens de lidar com testemunhas, análise forense, diferentes locais para investigar», explica Soufan. E interrogar os suspeitos, presos com a bênção relutante das autoridades, também não era pera doce. «O Iémen não era um sítio normal para fazer interrogatórios. Porque muitas vezes as pessoas que estás a interrogar têm mais influência do que tu, mesmo na prisão onde estão», recorda, entre risos. «Foi interessante. Mas, infelizmente para eles, o nosso tipo de interrogatório não lhes era habitual. Não eram gritos, bater na mesa, ameaças e tortura. Era uma conversa, apanhávamo-los usando provas circunstanciais, confundindo-os, tornando muito difícil que negassem o que se estava a passar e fazendo-os dar informação pouco a pouco. Depois apercebiam-se: ‘Uau, falámos demais’. Aí é demasiado tarde».
Empatia e constrangimento
Umas semanas após os atentados contra as embaixadas norte-americanas na África Oriental, Soufan deu por si numa pizzaria em Rabat, na companhia de um colega do FBI e de L’Houssaine Kherchtou, um jordano-marroquino conversador, muito interessado em saber mais sobre os canais por cabo disponíveis na América. Além disso, Kherchtou também era um operativo destacado da Al-Qaeda, escolhido para ser o piloto pessoal do próprio Bin Laden – mas entretanto tinham-se chateado por dinheiro.
Kherchtou ressentia-se pelo crescente peso dos egípcios da fação de Ayman al-Zawahiri, que estava em processo de fusão com a Al-Qaeda. Mas a gota de água foi quando regressou de uma escola de voo em Nairobi a Cartum, encontrando a sua mulher a mendigar nas ruas para pagar uma cesariana, no meio de uma gravidez de risco. Kherchtou estava proibido de a contactar pela Al-Qaeda, para evitar deteção, mas ainda assim pediu ajuda à liderança, que se recusou a pagar. Soufan estava consciente disso, e sabia que após a captura de Kherchtou não seria preciso muito para o fazer cooperar. Acabaria até por testemunhar contra a Al-Qaeda e entrar no Programa de Proteção de Testemunhas.
«Tens de manter as tuas emoções e sentimentos à porta. E, ainda assim, estás a falar com um ser humano, com os seus próprios sentimentos. Que odeia pessoas, ama pessoas, preocupa-se com a suas família. Tens de te focar na missão, em conseguir o que precisas desse indivíduo», relembra Soufan. «Mas é muito constrangedor. Andávamos à procura dele há imenso tempo e recordo-me que quando estávamos a voltar da pizzaria para o carro olhei à volta, por algum motivo. E pensei: ‘Meu Deus, eu estou de facto a almoçar com um terrorista’. Foi mesmo uma sensação constrangedora. Mas foi um sentimento que tive muitas vezes depois disso».
Uma tragédia evitável?
A 11 de setembro de 2001, Soufan estava na embaixada norte-americana em Sana, no Iémen, quando a namorada lhe telefonou a avisá-lo que as Torres Gémeas tinham sido atacadas. Viu o que se passava na televisão e ligou a O’Neil, sem resposta. Queria voltar de imediato a Nova Iorque, para participar na investigação, mas as chefias explicaram-lhe que um dos suspeitos do ataque ao USS Cole, Fahd al-Quso, podia ser a única pista para perceber o que acontecera.
«Quando me disseram que tinha de ficar, não pude evitar pensar: ‘Meu Deus, o que é que nos escapou? Porque é que a grande pista é aqui do Iémen?’», recorda Soufan. Rapidamente se apercebeu de que a chave estava numa reunião entre da Al-Qaeda em Kuala Lumpur, em 2000, em que participou Khalid al-Mihdhar, um dos terroristas que se despenhou contra o Pentágono, bem como Walid bin Attash, um perneta conhecido como um dos principais tenentes de Bin Laden, que durante o encontro ligou a Quso. A CIA soube do encontro e até revistou o quarto de hotel onde ficou Mihdhar, a caminho da reunião. Contudo, ciosa quanto ao secretismo, talvez influenciada por uma certa rivalidade com o FBI, a CIA recusou-se a partilhar a informação com Soufan, que tentava perceber porque é que Quso tinha recebido chamadas da Malásia. E o FBI ficou sem saber que tinha uma célula da Al-Qaeda debaixo do seu nariz. E não vigiou Mihdhar quando este chegou aos EUA, para preparar o 11 de setembro.
Soufan só recebeu o dossier que pedira quando as Torres Gémeas já estavam no chão, quando tentava saber quantos milhares de pessoas tinham morrido, quantos colegas tinha perdido. «Estás no meio do caos, tens todas estas estas preocupações na tua cabeça. E de repente tens na mão um pedaço de papel na tua mão que te diz que tudo isto podia ter sido evitado».