Chegado à igreja, onde a família teatral marcava presença – como, aliás, é regra naquele meio –, chamou-me a atenção uma frase escrita num pedaço de papel com a sua fotografia, pouco maior do que um cartão-de-visita, onde se lia: «Chegou a hora de viajar sozinho… Larguem-me… Deixem-me partir…». E continuava com outros pensamentos que muito me impressionaram. Era o próprio a despedir-se…
É evidente que estes registos dizem respeito a um determinado momento e devem ser interpretados num contexto específico. Porém, se os quisermos aplicar a outro contexto – por exemplo, à minha vida profissional –, haverá muito mais a acrescentar.
Congratulo-me com o aparecimento de sinais na sociedade que chamam a atenção para a necessidade de saber ‘deixar partir’ as pessoas quando chega a sua hora.
Ultimamente, talvez pela discussão acesa sobre a eutanásia – tema que divide (e muito) os portugueses, estando em causa a dignidade da vida humana versus o sofrimento que se pretende evitar –, começam a surgir teorias e maneiras de pensar de sentido oposto, às quais se fixam muitos daqueles que se recusam a aceitar que, num dado momento, todos temos partir.
Daí, como já disse nestas colunas, é hoje difícil admitir-se a morte natural, isto é, a que ocorre na sequência das causas normais (naturais) – como, por exemplo, as infeções, as doenças crónicas, as oncológicas, as vasculares, associadas ou não ao fator idade, já que presentemente vive-se até mais tarde.
Nesta perspetiva, é preciso encontrar sempre um ‘causador’ a quem atribuir a responsabilidade pela morte de alguém – quer seja o médico, ou a equipa ou a instituição onde os doentes acabam os seus dias.
Contava-me um leitor, também ele indignado com o caso, que uma família culpava o hospital pela morte de um familiar (pretendendo até proceder criminalmente contra ele), ‘esquecendo-se’ de revelar que tinham abandonado o parente naquele estabelecimento ao longo do seu internamento!
Por outro lado, no meio médico, começam também a verificar-se sinais de ‘inaceitação’ da realidade, ao pretenderem tratar-se situações clínicas em fase terminal e já sem o mínimo de condições para responderem positivamente à estratégia terapêutica.
Não será isto uma forma de distanásia? Onde está o bom senso clínico capaz de perceber que, em certos casos, é errado recorrer a manobras intempestivas ou a terapêuticas desnecessárias, devendo recorrer-se apenas a medidas de conforto e de suporte?
E nas doenças oncológicas avançadas – onde, por vezes, o lado humano se sobrepõe ao clínico – será correcto que, na ânsia desesperada de fazer mais alguma coisa para alcançar o que já não é alcançável, se bombardeiem os doentes com quimioterapias devastadoras, cujos resultados acabam por comprovar que de pouco ou nada serviram?
Esta poderosíssima arma terapêutica, proveniente do indiscutível progresso da medicina, é também uma ‘faca de dois gumes’ que exige cada vez mais critério rigoroso e ponderação na sua utilização. A experiência fala mais alto, e nem sempre os fins em vista justificam os meios para lá chegar.
Um pouco por tudo isto, é fundamental muita prudência e bom senso. Por muito que nos custe, há de chegar a hora de vermos os nossos partir e de percebermos que temos de os deixar ‘seguir o seu caminho’. Faz parte da vida e não é sinónimo de desinteresse, desleixo ou abandono.
Para os não crentes, é esta a visão real e objetiva do problema. Para os crentes, a questão coloca-se de uma outra maneira. A pensar neste grupo, no qual me incluo, transcrevo a parte final daquele papel que encontrei, por acaso, em cima de uma mesa à disposição de toda a gente, por considerar de fascinante beleza: «Se precisarem chamem-me que eu venho logo. E se ouvirem o vosso coração, poderão experimentar o alívio e a felicidade que vos dou. Ausente no corpo, presente com Deus».
(À memória do ator Alberto Villar)