A frase é tão essencialmente prática que só poderia ter sido escrita por um britânico: «On 12 September 1885, Arbroath played in the opening round of the Scottish Cup against Aberdeen-based club, Bon Accord, and the official score line reads as 36-0». Nenhuma tergiversão, nenhuma emoção exposta, apenas a constação de um facto que não deixava de ser chocante: o Bon Accord, com seu nome tão delicodoce, levara um daqueles achacamentos que se recordam per omnia saecula saeculorum, e aqui estamos, nesta páginas, a provar cabalmente a veracidade da expressão. O autor da frase é um escritor e jornalista que vive actualmente em Espanha, perto de Madrid, e além de ser completamente fascinado pela história do futebol assina a sua obra – que já vai sendo espessa – com o nome de Gary Thacker.
Foi Gary que me alertou pela primeira vez para o tal encontro entre o Arbroath e o Bon Accord ocorrido lá pelas calendas de Dezembro de 1885, decorrem agora 135 anos. Disputava-se a primeira eliminatória da Taça da Escócia e o resultado foi tão abracadabrante que ainda hoje há quem se disponha a fuçar em jornais velhos e testemunhos dispersos para tentar perceber a razão de tamanho cataclismo.
Foi um embate de gente madura e outra nem por isso. Se o Arbroath fora fundado em 1878, o Bon Accord vira a luz do dia apenas um ano antes. Não era um clube de futebol verdadeiraamente estruturado: era apenas um grupo de rapaziada que jogava ténis, râguebi e pólo e que, quando se juntava para um momentos de association, assumia o nome do bairro de Aberdeen onde quase todos viviam. Além disso, estava a contas com muitas contas, ou seja, metido em sarilhos financeiros que não pareciam de fácil resolução. Obviamente que estas informações começam a feder a desculpas, mas verdadeiramente os moços de Aberdeen também têm direito a apresentar uma (ou várias) justificação para terem sido escambulhados daquela forma e nem a morte de todos os elementos da equipa os exime de trazerem a lume argumentos válidos.
Gary Thacker assume ter encontrado provas irrefutáveis que os infelizes derrotados subiram ao relvado de Arbroath’s Gayfield Park com somente nove jogadores. Além do mais, não tinham nenhum guarda-redes disponível e nem sequer equipamentos para se fardarem a preceito nos balneários. Convenhamos que a desgraça do Bon Accord ganhava foros de ridículo. Ou mesmo de grotesco.
Um dos heróis dessa gesta era vendedor de botijas de gás, Andrew Lornie, e ganhara um físico impressionante ao carregá-las aos ombros até às casas dos clientes. Na esperança que pudesse ocupar mais espaço do que qualquer dos outros, enviaram-no para a baliza. Andrew era um rapaz tímido, apesar de ser quase da altura do pico do Ben Nevis. Envolvido pelos adeptos adversários que se instalaram atrás da sua baliza, muito deles chegando até a invadi-la com um descaramento sublime, tremeu como varas verdes e não há registo que tenha feito uma defesa que se visse. À medida em que os infernais noventa minutos iam decorrendo com uma lentidão desesperante para o infeliz carregador de botijas de gás, um fedelho de 18 anos, John Petrie, passeava-se sobre a relva como percorresse, saltitando, um campo de gipsofilas à procura de crisântemos: só à sua conta marcou 13 golos. Não estava atmosfera para devaneios desse género, é uma simples imagem. Pelo contrário, choveu sobre a magnífica cidade portuária de Arbroath – alguns mais dados às complicações preferem tratar por Aberbrothock –, famosa pelos seus bifes red-Angus, como se alguém lá no céu tivesse deixado as torneiras todas abertas. Um pormenor que fez com que Jim Milne Sr. perdesse por completo a paciência e começasse a insultar todos aqueles que lhe passavam à distância da voz e, igualmente, o ser divino que se dera ao luxo de pretender inventar um novo dilúvio, como se o primeiro não tivesse demonstrado a sua completa initulidade.
Jim era o keeper titular da equipa do Abroath. Há quem diga que não viu qualquer adversário a menos de 25 metros de distância. Pediu um guarda-chuva a um espectador e deixou-se ficar à espera, encostado a um dos postes. Uma grandessíssima estucha! Dave Stormont foi o árbitro. Mostou-se sensibilizado com a força de vontade dos jogadores do Bon Accord: «Vi-os baterem-se como podiam. Encaixaram 36 golos mas a verdade é que anulei mais uns 6 ou 7 por off-side, embora a tempestade me possa ter feito cometer erros em alguns deles».
Uns dia mais tarde, nova tranquibérnia caiu do céu aos trambolhões: a Federação Escocesa tinha mandado a nota para a realização do jogo para uma morada errada. Algum amanuense apressado e ansioso por uma pint de pale ale no pub do lado, confundira o Bon Accord com o Orion FC e atirara os primeiros para um massacre que não fora ordenado pelo sorteio. Nos dois anos que se seguiram, o Destino emendou a mão. O Abroath recebeu o Orion nas duas primeiras eliminatórias daa Taça. Ganhou por 28-0 e por 18-0. Era de tirar a barriga de misérias.
afonso.melo@newsplex.pt