Durante toda a campanha, o Presidente Donald Trump esteve atrás nas sondagens em boa parte dos swing states, foi ultrapassado pelos democratas em financiamento e obrigado a discutir assuntos que lhe dão pouca popularidade, como a gestão da pandemia, que quase 2 em cada 3 americanos desaprovam, segundo a FiveThirtyEight.
Isso quer dizer que é praticamente impossível Trump sair vencedor? Não necessariamente. No complexo sistema eleitoral dos EUA, em que quem ganha um estado fica com os votos todos, bastam ligeiras flutuações no sítio certo para virar a balança. O estreito caminho para a reeleição de Trump implica vencer a Florida e a Pensilvânia, defender estados que controlou facilmente em 2016 – Arizona, Georgia, Iowa, Carolina do Norte e o Texas, um bastião republicano – e ficar com o Michigan ou o Wiscosin. Os cálculos do Economist preveem 8% de probabilidade disso acontecer, até o Texas é disputado por Biden, mas não seria a primeira vez que Trump excedia expectativas.
«Em 2016, a sua probabilidade de vencer as eleições era igual à de fechar uma sequência no póquer», descreveu Whit Ayres, um analista republicano veterano, à Associated Press. «A questão este ano é se consegue fechar uma sequência em duas mãos seguidas», continuou. «Teoricamente é possível, mas na prática é difícil».
Por um lado, dificultando uma viragem de última hora a favor do Presidente, as sondagens mostram uma percentagem muito baixa de eleitores indecisos, num país cada vez mais polarizado. Por outro, os republicanos apostaram numa gigantesca campanha de registo de eleitores porta a porta, com 2,5 milhões de voluntários, focando-se em áreas com populações maioritariamente brancas e sem estudos superiores – uma demografia que votou maioritariamente em Trump em 2016, por uma margem de 25%.
Aprender a viver ou a morrer?
No entanto, o Trump de 2016 não é o mesmo que o de 2020. Já não é um forasteiro da política, a disparar críticas à dinastia Clinton. É um Presidente em cujo mandato 230 mil pessoas morreram nos EUA e 8,7 milhões foram infetadas por um novo vírus, controlável com medidas simples de saúde pública, como uso de máscara e distanciamento social.
O último debate presidencial talvez tenha sido o momento em que Trump expressou mais claramente a sua estratégia quanto à covid-19. «Estamos a aprender a viver com ela, não temos escolha. Não nos podemos fechar numa cave como o Joe faz», explicou o Presidente, olhando para o seu adversário. «Ele tem a possibilidade de se fechar, não sei, obviamente fez muito dinheiro em algum lado. Mas as pessoas não conseguem fazer isso».
Com mais de 25% dos norte-americanos a ganhar menos que em fevereiro, segundo a Population Survey, com milhões desesperados à procura de emprego, poderia ser uma mensagem apelativa. A própria Organização Mundial de Saúde avisou para o risco de fadiga com a pandemia, ou seja, uma tendência para sobrevalorizar o impacto social das medidas de contenção do vírus e subvalorizar o risco de contágio.
Contudo, com os EUA em plena terceira vaga, as sondagens continuam a mostrar desagrado generalizado com a gestão Trump, com 66% dos norte-americanos receosos de ser infetados, segundo a FiveThirtyEight. E parece demasiado tarde para mudar essa perceção a tempo das eleições.
«Ele diz que estamos a aprender a viver com isto. As pessoas estão a aprender a morrer com isto», rematou Joe Biden. «Vocês aí em casa terão uma cadeira vazia na mesa da cozinha de manhã. Homens e mulheres vão deitar-se na cama à noite, estender a mão onde o marido ou mulher costumava estar, por hábito, e eles não estão lá».
«Estamos a virar a esquina», prometeu Trump, a covid-19 «vai desaparecer». Já Biden avisava: «Estamos prestes a entrar num inverno negro. Mas ele não tem um plano claro».
Uma conspiração ‘misteriosa’
Nem o velho cavalo de batalha de Trump, a denúncia da corrupção dos seus adversários democratas, tem o mesmo fulgor que em 2016. Nesse ano, mais ou menos por esta altura da campanha, os analistas já tinham declarado a morte política do futuro Presidente, após ser gravado a falar de agarrar mulheres pela vagina. Tudo mudou com a Wikileaks revelou emails pirateados da campanha da rival de Trump, Hillary Clinton, detalhando atos suspeitos de corrupção.
Já nesta campanha mal se ouviu o velho slogan de Trump, que prometia «secar o pântano». Afinal, é difícil não notar que Trump, enquanto Presidente, foi acusado de enriquecer com o cargo, ser subornado por dignitários estrangeiros que pagaram por centenas de quartos nos seus hotéis e até de fuga ao fisco norte-americano, ao mesmo tempo que pagava quase 200 mil dólares em impostos à China, avançou recentemente o New York Times.
Isso não impediu o Presidente de puxar do tópico da corrupção durante o debate presidencial, lançando acusações contra o seu adversário. O enredo da conspiração é complexo, não fundamentado e dificíl de seguir, mas envolve um «portátil do inferno», nas palavras de Trump, cheio de supostos emails comprometedores do filho de Biden, Hunter, entregue ao New York Post pelo próprio advogado de Trump, Rudy Giuliani.
Primeiro dizia-se que Biden teria beneficiado dos negócios do filho na Ucrânia, depois na China, apesar dos seus registos fiscais serem públicos – a Fox News chegou a sugerir que Hunter Biden é pedófilo. «Todo o assunto é vago e misterioso para qualquer pessoa que não esteja presa dentro do universo Fox News», notou o Guardian.
O problema de Trump é que, apesar do canal conservador ser o mais visto do país, as suas acusações não chegam à maioria do eleitorado, nem sequer a todos os republicanos – só cerca de 40% têm a Fox News como a sua principal fonte de informação, segundo o Pew Research Center. Já os Clinton tiveram um escândalo muito mais credível que Biden, e décadas de suspeitas de corrupção sobre eles. «Ele deveria perceber que um truque que funcionou uma vez nem sempre funciona», sugeriu a New York Magazine ao Presidente.
O muro desaparecido
A grande ausência desta campanha eleitoral é a discussão sobre política migratória, decisiva em 2016. Já mal se ouvem cânticos de «build the wall», tão populares entre os apoiantes do Presidente, nunca mais o ouvimos falar dos mexicanos como violadores, traficantes de droga e assassinos. Dos dez grandes temas da campanha Trump, tornou-se o menos mencionado nos seus anúncios de televisão, segundo uma análise do Wall Street Journal.
Talvez seja em parte porque, depois de quatro anos de mandato, o tal muro nunca se materializou e o México nunca o pagou, depois de sucessivos bloqueios dos democratas no Congresso. Ao mesmo tempo, face à pandemia, a imigração tornou-se uma preocupação menor para os eleitores – em 2016 era um tema crucial para 70%, agora apenas para 53%, segundo o Pew Research Center.
Subitamente, os ganhos políticos do discurso duro quanto à imigração de Trump diminuíram, mas mantém-se o risco de hostilizar o eleitorado latino, uma demografia crescente, essencial na Florida, um estado que o Presidente não se pode dar ao luxo de perder.
«Há um certo ponto em que os eventos do mundo real se intrometem numa campanha eleitoral de tal maneira que não podem ser ignorados», resumiu Jacob Neiheisel, professor de comunicação política na Universidade de Buffalo.
Além disso, uma coisa era Trump falar de restrições à imigração em 2016, quando eram apenas promessas abstratas de segurança e estabilidade; outra coisa é quando o Presidente Trump fala do assunto, tendo os eleitores visto os resultados concretos dessa política, as imagens chocantes de crianças em jaulas, separadas das suas famílias. Já Biden também não tem grande incentivo para apontar o dedo. Não só não é um tema tão mobilizador quanto costumava ser, como arrisca que os eleitores se lembrem que foi vice da Administração de Barack Obama, responsável por um pico nas deportações de imigrantes.
«Vimo-lo fazer algumas referências obliquas a falhanços de política pública, mas não a esse. Creio que é sobretudo porque as pessoas não estão interessadas neste momento», explicou Neiheilsen ao U.S. News and World Report.
O apoio dos mais ricos
Nos restantes tópicos do debate, Trump também pareceu estar a remar contra a maré. Após Biden prometer aumentar a abrangência do ‘Obamacare’, que regula os preços dos seguros de saúde, num novo programa a que chamaria ‘Bidencare’, o Presidente acusou o democrata de ser de extrema-esquerda e pretender «socializar a medicina». Em vez disso, prometeu «belos cuidados de saúde, novos em folha», um projeto que promete desde o início do seu mandato, mas cujas especificidades nunca revelou.
É dificil perceber como esta acusação se pode traduzir em ganhos eleitorais para Trump. Para os 69% dos norte-americanos que apoiam o Medicare for All – uma proposta mais ambiciosa que a de Biden, uma espécie de sistema nacional de saúde, proposto por figuras como Bernie Sanders – dificilmente ressoará.
Já entre os 31% que são contra a proposta, segundo a HarrisX, poderá ser difícil imaginar Biden, representante da ala democrata mais conservadora, como uma figura de extrema-esquerda. Sobretudo quando acumula cada vez mais financiamentos vindos de Wall Street, Sillicon Valley e Hollywood – algo que deixa a campanha republicana em sérias dificuldades e os democratas mais à esquerda preocupados.
Só nos últimos seis meses, a campanha democrata recebeu quase 200 milhões de dólares (cerca de 170 milhões de euros) em doações acima dos 100 mil dólares (quase 85 mil euros). É mais do dobro recebido em doações acima deste valor pela campanha de Trump, avançou o New York Times, que notou que Biden esqueceu algumas regras de transparência nas doações que costumava defender.
Até Trump admitiu estar atrás em financiamento, mas gabando-se que, se quisesse mais dinheiro, bastava ligar ao CEO de uma multinacional, como a petrolífera ExxonMobile – um antigo diretor-executivo da empresa, Rex Tillerson, foi o seu primeiro secretário de Estado.
Trump começou a recolher doações para a reeleição no dia em que tomou posse. Mesmo assim, a campanha de Biden está a esmagá-lo com anúncios televisivos, inundando estados cruciais como a Florida e a Pensilvânia, segundo a CNN.
Já Trump só gastou mais que Biden em estados como o Texas e o Iowa, que há uns meses ninguém imaginaria que Biden pudesse disputar. Contudo, o «dinheiro, gasto em anúncios ou noutras coisas, não determina uma eleição presidencial. Se não, Hillary Clinton seria Presidente neste momento», escreveu o canal norte-americano.