Samuel Paty era um homem comum e, certamente, quando começou o presente ano letivo, o terceiro na escola Bois d’Aulne, estaria longe de imaginar que ia tornar-se um mártir da liberdade de expressão ou receber o título póstumo de Legião de Honra, a mais importante condecoração francesa.
Pelo menos há três anos que o professor fazia um exercício com os seus alunos (confirmam os próprios) durante as aulas de cidadania. De forma a promover um debate sobre a liberdade de expressão, terrorismo e intolerância religiosa, mostrava nas aulas cartoons que satirizavam o profeta Maomé.
Não o fazia com o intuito de insultar ninguém, o próprio convidava os alunos muçulmanos a sair da sala de aula caso fossem sensíveis a este tema.
Este ano letivo foi a última vez que Paty praticou o seu exercício. A exibição de um cartoon da revista Charlie Hebdo, alvo de um ataque terrorista em 2015, gerou indignação em alguns estudantes e nos seus pais. Ainda que Paty não tenha mostrado os cartoons «para ser polémico ou desrespeitar os estudantes», como diria o pai de uma estudante, o facto é que, após a controversa aula, outra aluna, de 13 anos, descreveu que o professor «andava desconfortável».
Na sequência do que foi denunciado como um ato islamofóbico, o pai de uma aluna dirigiu-se à escola para exigir a demissão do professor de História e Geografia. Falhado o objetivo da missão, o homem surgiu ao lado de um membro do grupo terrorista Hamas onde decretavam fatwa – o mesmo decreto islâmico de execução que foi dirigido a Salman Rushdie quando publicou Os Versículos Satânicos – a Paty.
Quem respondeu a este apelo foi Abdoullah Anzonov, um jovem de 18 anos nascido em Moscovo, mas de origens chechenas. No dia 16 de novembro, quando Paty regressava para casa, onde morava com o seu filho de cinco anos, Anzonov abordou o professor. Enquanto gritava «Allahu Akbar» decapitou-o com uma faca.
Anzonov acabou por ser abatido pela polícia pouco depois do assassinato, mas não sem antes ter admitido no Twitter que tinha cometido o crime.
Ensinar a liberdade de expressão
Pela descrição de ex-alunos e colegas, poucos imaginariam que a vida de Paty terminaria de uma forma tão cruel.
«Totalmente dedicado à profissão», resumem os professores que trabalhavam com ele. «Ele queria mesmo ensinar-nos», confirma um ex-aluno de Paty, Martial, de 16 anos, pouco mais novo que o homicida.
«Quando meu filho tinha um problema, ele ouvia-o. Ninguém merece isso, muito menos ele», desabafou a mãe de um aluno, Nathalie Allemand.
«Estou destruído. Samuel Paty foi meu colega de licenciatura. Era um estudante brilhante, um superprofessor, um homem de diálogo», escreveu no Twitter um ex-colega da vítima, Christophe Capuano. «Citarei o teu nome e o teu exemplo, camarada, a todos que quererão ainda exercer esta linda profissão», acrescentou.
O radical Anzorov
O homem de origem chechena mudou-se para França em 2008, quando tinha 4 anos. Anzorov apenas possuía antecedentes criminais de delitos comuns. Contudo o procurador-geral anti-terrorista, Jean- François Ricard, afirma que a sua radicalização é evidente, referindo que no seu telemóvel descobriram o texto de reivindicação, publicado no Twitter, antes do ataque, assim como a fotografia da cabeça decapitada de Samuel Paty.
A acompanhar a imagem ainda existia uma mensagem dirigida ao Presidente francês, Emmanuel Macron, onde explicava que pretendia avançar com a execução em nome de Alá. Neste texto chamava a Paty «um cão do inferno» que «tentou menosprezar o profeta Maomé».
O refugiado russo foi descrito por vizinhos como um jovem «discreto» e «solitário» que há cerca de três anos estava «mergulhado na religião». Um jovem que vivia no mesmo bairro do assassino disse à AFP que este «deve ter sido manipulado ou ter visto demasiados filmes em vídeo». Mas deixou uma ressalva: «Isso não tem nada a ver com a nossa comunidade».
Os chechenos em França são alvo de vigilância apertada pelos serviços de segurança interna. Segundo o coordenador dos serviços secretos e da luta contra o terrorismo, esta comunidade representa entre 15 e 20% dos islamitas radicalizados, pode ler-se no site Rádio França Internacional.
Temendo uma «estigmatização», a Assembleia dos Chechenos da Europa condenou este crime. «Nenhuma comunidade pode ser tida como responsável pelos atos isolados cometido pelos seus conterrâneos».
Na sequência da decapitação, a polícia francesa já lançou diversas operações policiais contra «dezenas de indivíduos» envolvidos no movimento islamita e encerrou uma mesquita em Paris.
«Samuel Paty foi morto porque os islamitas querem o nosso futuro e sabem que com heróis silenciosos como ele nunca o terão», disse Macron, que garantiu mais ações contra o islamismo radical.
O ativista francês muçulmano Yasser Louati disse â Al Jazeera que os «muçulmanos estão a ser um alvo» e acrescentou que o Presidente francês está a usar a «islamofobia para impulsionar a sua campanha».
Rescaldo do atentado
Entretanto, já foram chamados a tribunal nove cúmplices do crime. Entre os arguidos está Brahim C., pai da uma aluna, que apelou a uma mobilização contra Paty e que trocou mensagens com Anzorov, assim como o radical islâmico Abdelhakim Sefrioui, que acompanhou o pai da aluna nesta mobilização.
Além de Brahim e Sefrioui, vão comparecer perante o juiz dois estudantes menores, de 14 e 15 anos, suspeitos de terem recebido dinheiro do atacante em troca de informações sobre a vítima. Segundo o procurador-geral, a identificação do professor «só foi possível devido à intervenção dos alunos». O agressor terá oferecido entre 300 e 350 euros em troca da informação.
Também estiveram presentes em tribunal três amigos do atacante que se entregaram à polícia na sexta-feira à noite.
Samuel Paty foi homenageado por toda a França com manifestações a favor da liberdade de expressão.
O professor foi distinguido por Emmanuel Macron com a Legião de Honra a título póstumo, e o filho, de cinco anos, foi declarado «pupilo da nação», uma distinção atribuída aos filhos de pais mortos em combate ou num atentado. J