Há poucas semanas, num encontro onde estive presente, ouvi, estupefacto, um colega meu de uma especialidade cirúrgica afirmar categoricamente que, para ele, fazer medicina era apenas fazer intervenções cirúrgicas complicadas, pois tudo o resto ‘não era nada’.
A este especialista, bem como a todos aqueles que trabalham nos blocos operatórios, ninguém lhes pode tirar o seu valor nem deixar de reconhecer as suas inquestionáveis qualidades. Por outro lado, estão no seu legítimo direito de emitir a sua opinião e de defender os seus pontos de vista. Cada um pode ter as ideias que quiser; e é nossa obrigação respeitá-las, mesmo não concordando com elas, se quisermos que se passe o mesmo connosco.
Porém, se estas teorias estivessem confinadas ao meio médico, a questão discutia-se apenas ‘em casa’, isto é, entre os profissionais da classe. O pior é que elas extravasam para fora da medicina e atingem toda a sociedade – que se foi habituando a tratar de forma diferente os médicos dos hospitais e os das outras áreas. Os primeiros são os ‘senhores doutores’; os que não pertencem à carreira hospitalar são os ‘outros’.
Boa parte das pessoas associa imediatamente a profissão de médico à palavra ‘hospital’ e, por extensão, ao bloco operatório. Quando um médico é apresentado, a primeira pergunta que lhe fazem é: «Em que hospital trabalha?». Ou então: «Opera onde?».
Como facilmente se percebe, são conceitos absolutamente errados e até ridículos. Então, um médico não hospitalar – e, já agora, não cirúrgico – não é médico? Não faz medicina? E as outras vertentes da medicina não são igualmente importantes?
Ao ouvir aquelas absurdas afirmações, lembrei-me de todos os colegas que, nestes tempos de pandemia, arriscam a vida a tratar doentes nos cuidados intensivos. E dos clínicos gerais que, nas unidades de saúde familiares ou nos ‘centros’ criados à pressa em plena covid-19 para triagem de situações agudas, equipados a rigor e trabalhando em condições dificílimas, dão o melhor de si próprios pelas vidas humanas que têm nas mãos.
Isto não é fazer medicina? E os médicos de saúde pública também não fazem medicina?
Muitos outros exemplos podiam aqui ser referidos. Mas infelizmente são ideias destas que vão prevalecendo e se transmitem de geração em geração, espalhando-se a toda a opinião pública que passou a adotar esses ‘dois pesos e duas medidas’, permitindo tudo a uns e nada tolerando aos outros.
Lembro-me, a propósito, do caso muito elucidativo de uma doente minha que usava e abusava do centro de saúde, com visitas muito frequentes e desnecessárias. E paralelamente também recorria ao hospital, sendo observada numa consulta de outra especialidade cujas marcações obedeciam a um rigoroso critério clínico, que ela sempre respeitava e nem se atrevia a contestar.
Ao aperceber-me das suas vindas exageradas ao centro de saúde – e tendo eu conhecimento do seu outro acompanhamento hospitalar –, perguntei-lhe um dia se ela ia também tantas vezes ao hospital. A senhora, na sua boa-fé, sem perceber o alcance da minha pergunta, respondeu com a maior franqueza: «Não, senhor doutor! De maneira nenhuma! Se eu fizesse no hospital o que faço aqui, já tinham corrido comigo das consultas!».
Está tudo dito. Nos hospitais há regras a cumprir; cá fora vale tudo.
Não é por acaso que isto acontece. O início é ‘cá dentro’, com posições e teorias provenientes dos médicos mais velhos, passando depois para os mais novos e, finalmente, para a população em geral – formatada já para ver nuns ‘os filhos’ e noutros ‘os enteados’.
É preciso pôr fim a esta mentalidade retrógrada e enganadora. Encaremos os novos tempos com outros olhos e outra maneira de pensar. Todos somos necessários a ‘fazer medicina’, e ninguém pode ser excluído. Tenho fé nesta geração mais nova e acredito nas suas capacidades para renovar o sistema. Têm um grande desafio pela frente e um longo caminho a percorrer. Caros colegas: tudo começa em nós. Mostrem que são capazes. Não desistam!