Há muito que a política norte-americana é marcada por receios de supressão eleitoral, mas nunca como este ano, com milhões a votar por correio e com o Presidente Donald Trump a equacionar o processo com fraude eleitoral. Há uma possibilidade de não haver um vencedor na noite eleitoral, a 3 de novembro, e teme-se até que o Presidente declare uma vitória antecipada, com os votos por correspondência – maioritariamente democratas, mostram as sondagens – por contar em vários estados cruciais, como o Michigan, Pensilvânia e Wisconsin.
«É uma possibilidade real. A não ser que haja uma margem tão ampla que Biden tenha 270 votos no colégio eleitoral, que o total de votos nesses estados seja tão drástico, compara aos seus eleitores, que se saiba que mesmo que os votos por correio sejam de Trump não há maneira de ele ganhar», explica ao SOL J. Edwin Benton, professor de Ciências Políticas da Universidade do Sul da Florida.
«Tenho 70 anos, adoro o meu país, mas pela primeira vez tenho medo do que poderia acontecer, todos os cenários loucos possíveis», diz Benton. «O que acontece se ele declara lei marcial e se tenta rodear de militares e da CIA, dos quais ele é o comandante-em-chefe? Tornamo-nos uma república das bananas? Ou se ele tenta empatar o processo nos tribunais?».
«O assustador é que qualquer caso iria expeditamente para o Supremo Tribunal. E ele tem esse voto seguro, se os juízes puserem de lado os seus escrúpulos e integridade», alerta o professor. Referia-se à recente super maioria conservadora no Supremo Tribunal, com a nomeação de Amy Coney Barrett – o próprio Trump admitiu que a urgência foi para que Barrett pudesse tomar uma decisão quanto às eleições. «Ele agora tem mais um voto do que há uns dias», resume Benton.
Não seria a primeira vez que o professor via uma disputa eleitoral ser resolvida no Supremo Tribunal. A última foi em 2000, no seu próprio estado, quando Al Gore e George W. Bush tinham umas meras centenas de votos de diferença na Florida e toda a eleição dependia disso. Houve recontagem após recontagem, até que o assunto passou para a Justiça.
«Todas as televisões e rádios tinham o seu tema na noite eleitoral. O programa em que participei nessa noite chamava-se Decisão 2000. Às três da manhã, depois do intervalo, o apresentador disse: ‘Bem-vindos ao Indecisão 2000’», recorda Benton, entre gargalhadas. «Cheguei a casa, tomei um banho, fui dar aulas. Os alunos perguntaram-me: ‘Isto vai para o Supremo Tribunal, quem vai ganhar?’. Sem pestanejar disse: ‘O Bush’. Perguntaram-me porque é que dizia isso e respondi: ‘Contem-nos!’ Cinco dos juízes foram nomeados por republicanos, quatro por democratas. O resultado seguiu as linhas partidárias. E Donald Trump não se esquece disso», lembra o professor. «O tribunal é suposto ser neutro, objetivo. Mas, debaixo dos robes, os juízes usam vermelho ou azul».
Supressão de voto
Contudo, a era Trump também traz receios que vêm de trás, como a supressão eleitoral. «Sempre foi surpreendentemente difícil votar na América», afirma Michael Li, texano e analista do Brennan Center para o direito de voto. «Temos de nos registar para votar, muitas vezes os horários para votar são muito restritos, os locais de voto mudam muito, às vezes são muito longe e não são suficientes, sobretudo em áreas com grandes populações de minorias».
«Pode surpreender pessoas de outros países, os EUA gostam de se gabar de ser o líder da democracia. Mas da perspetiva da Europa ou de países democráticos da Ásia é chocante quão difícil votar aqui», assegura Li. «Vejo a diferença com a minha família em Taiwan, têm locais de voto em todo o lado!», nota. «Nós deixamos as coisas na mão dos estados, os estados deixam nas mãos das localidades, por isso não há muitas regras uniformes».
O problema é quando isso é utilizado como arma de arremesso político. «O voto tornou-se cada vez mais polarizado em função de linhas raciais, com eleitores não-brancos a apoiar um partido, enquanto o outro partido depende praticamente só de eleitores brancos», explica. «Isso tornou tentador visar comunidades não-brancas para ganhar eleições, seja através de leis que regulam as urnas, diminuindo o número de locais de voto, alterando mapas eleitorais, para preservar o poder do partido que depende quase exclusivamente do voto branco, os republicanos»
«O Texas é um exemplo extremo disso, pelo grau em que eleitores brancos apoiam os republicanos e os não-brancos os democratas», exemplifica. «É um diferente em Nova Iorque ou no Wisconsin, em que os democratas têm uma percentagem maior do voto branco».
Então, numa eleição histórica, com Trump atrás nas sondagens, será que os republicanos vão acelerar os esforços nesse sentido este ano, aproveitando do receio da covid-19? Poderá isso decidir as eleições a favor do Presidente?
«Pode acontecer», considera Li. «Mas o encorajador é que a participação eleitoral por todo o país, no voto antecipado, tem sido extraordinária, incluindo muitos eleitores jovens e não-brancos».
«Podes controlar as coisas tanto quanto quiseres, através de supressão ou não contando votos, mas é impossível construir um dique que controle um tsunami de participação eleitoral». E remata: «Este ano as pessoas até caminham sobre brasas para votar».