Coronavírus. Num ano de tragédias, uma luz ao fundo do túnel?

Resultados preliminares da vacina da Pfizer mostram uma eficácia acima dos 90%, muito mais do que o esperado. Mas o mistério quanto à duração da proteção está longe de ser resolvido.

Boas notícias para todos os que estão receosos pela sua saúde e dos seus entes queridos, preocupados com a economia, fartos de sair e entrar em confinamento e mal podem esperar pelo fim da pandemia. Resultados preliminares da farmacêutica americana Pfizer e da alemã BioNTech mostram que a sua vacina, que está na última fase de testes clínicos, tem mais de 90% de eficácia a evitar covid-19, a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2.

A expetativa dos cientistas era que a eficácia fosse muito mais baixa. Até os mercados financeiros sentiram a maré a mudar, com Wall Street a registar uma subida recorde, após meses de quebras. Agora, a Pfizer e a BioNTech esperam ter dados suficientes para pedir a aprovação da sua vacina – que Portugal poderá receber através da União Europeia – já na terceira semana de novembro. E Washington já prometeu que começará a ser distribuída logo nas 24 horas após a aprovação. 

“É muito animador”, assegura ao i o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Mas há algumas coisas que ainda não sabemos”, acautela. Não só estes resultados são preliminares como “isto não nos diz nada sobre a duração da imunidade e que tipo de imunidade”.

“Por exemplo, não sabemos se impede a reinfeção sem sintomas ou não” – os famosos casos assintomáticos, que tornam tão complicado rastrear cadeias de infeção. Já no que toca à duração da imunidade da vacina, a diferença entre termos de andar sempre a tomá-la ou não, isso “só o tempo é que poderá dizer”, avisa Carmo Gomes.

 

À espera das infeções Para compreender o que significam estes resultados, importa perceber como funcionam os ensaios clínicos de uma vacina. Ao contrário de outros fármacos, uma vez que será tomada por milhões e milhões de pessoas saudáveis, uma vacina é sujeita a controlos mais apertados. E como, obviamente, não podemos dar a vacina a uma cobaia e expô-la à doença para ver se funciona, após os testes em animais a solução é dar a vacina experimental a dezenas de milhares de voluntários, placebos a outros, deixá-los viver a sua vida normal numa região com um surto e esperar que um número suficiente deles seja infetado, para avaliar a diferença entre o placebo e a vacina.

Normalmente, as autoridades de saúde americanas obrigam a que os ensaios clínicos sejam cegos, só se observando os resultados no final. Contudo, numa investigação de um fármaco crucial, que pode ajudar a enfrentar um vírus que já infetou mais de 50 milhões de pessoas e matou 1,2 milhões, foi permitida uma ”espreitadela”, nas palavras de Carmo Gomes. 

“Os resultados finais só serão obtidos quando eles tiverem 164 pessoas infetadas. Nesta ‘espreitadela’, o mínimo que eles precisavam de ter era 32 pessoas infetadas, mas havia 90”, enumera o investigador. “Além disso, precisavam de observar no mínimo 77% de eficácia, encontraram 90%”.

Isso não significa necessariamente que se registará uma eficácia de mais de 90% da vacina no final do ensaio. Mas não há grandes dúvidas que a eficácia será superior aos 50%, o mínimo para a sua aprovação.

“Se eles com 90 infeções têm esta eficácia toda, é improvável que com 164 tenham uma eficácia mais baixa”, explica o investigador. A expectativa é que seja “mais eficaz que a vacina da gripe, mas muito menos eficaz que as vacinas que temos no programa nacional de vacinação, como as para a difteria, tétano, tosse convulsa, sarampo, rubéola. Essas vacinas têm eficácias na ordem dos 95% ou mais”.

“Agora, é preciso ver que o coronavírus é uma emergência, estão milhares de pessoas a morrer por dia, portanto é preciso conseguir um equilíbrio entre a exigência de eficácia e a introdução rápida da vacina no mercado”, afirma Carmo Gomes.

Neste ponto, surgem novas dificuldades. Primeiro, os stocks são muito baixos face à sua futura procura, como explicou ao i Yadav Prashant, investigador de cadeias de abastecimento médicas no Centro para o Desenvolvimento Global, em Washington.

“A maioria das empresas que têm um produto em testes clínicos estão a acumular algumas reservas. Produzem entre 10 e 15 milhões de doses”, exemplificou Prashant, em julho. Desde então, houve iniciativas para colmatar isso com apoios estatais, por exemplo com produção de mais dezenas de milhões de doses da vacina da AstraZeneca e da Universidade de Oxford. Mas não na escala que será necessária pelo menos para já.

“É quase impossível imaginar que empresas comecem a produzir um milhar de milhões de doses e tê-las prontas, antes de saberem se a vacina será aprovada ou não”, explicou Prashant. E é provável que demore meses a criar a infraestrutura necessária para produzir e distribuir tais quantidades de vacina.

 

Enganar as células Afinal, concretamente, como é feita a vacina da Pfizer e da BioNTech? Trata-se de tecnologia de ponta, nunca antes utilizada numa vacina contra uma doença infecciosa. A ideia é injetar RNA mensageiro – a molécula que transporta informação dos genes para produção de proteínas – com o código dos anticorpos contra o SARS-CoV-2, para enganar as nossas células, levando-as a produzi-los.

Uma das grandes desvantagens desta vacina, composta por duas doses, é o facto de precisar de ser mantida em refrigeração. “Pode ser um assunto delicado, porque requer uma rede de frio muito exigente. São precisas câmaras frigoríficas a – 70 ºC, o que não é normal”, lembra Carmo Gomes. “Mas esse é um problema com que a nossa Direção-geral de Saúde já sabe que tem de contar”.

A UE também deverá receber doses da vacina da AstraZeneca e da Universidade de Oxford, feita fundindo o genoma do SARS-CoV-2 com adenovírus de chimpanzés, um tipo de vírus conhecido por causar constipações. Foi a primeira a entrar na última fase de testes, e esperam-se resultados finais quanto à eficácia antes do final deste ano.

“Estaremos prontos para fornecer centenas de milhões de doses de vacina por todo o mundo em janeiro”, prometeu esta semana o CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot.

Já a duração da imunidade destas vacinas continuará a ser um mistério durante uns bons tempos. “Daqui a seis meses ver-se-á quais são os níveis de anticorpos que estas pessoas têm”, explica Carmo Gomes. 

“Mas mesmo que não tenham anticorpos, não significa que não tenham proteção. Há outro sistema paralelo de proteção, as células T, a chamada imunidade celular, que não se consegue medir com facilidade”, acrescenta. “Só com o tempo veremos se alguma das pessoas que tomaram a vacina, que aparentemente tinham proteção a seguir à toma, foram infetadas”.