De que se queixa Donald Trump?

As queixas do Presidente, que ainda não apresentou qualquer prova, incluem alegada fraude nos votos por correio, o ‘sharpiegate’, supostos boletins queimados e ‘eleitores-fantasma’.

De que se queixa Donald Trump?

Desde a noite eleitoral de 3 de novembro – mesmo antes disso – que ouvimos a Administração de Donald Trump proclamar sonoramente que houve fraude, enquanto os seus advogados se desdobram em processos judiciais. Não há grandes dúvidas de que o Presidente que não terá sucesso nesse esforço – até o estratega republicano Karl Rove, arquiteto da disputada vitória de George W. Bush sobre Al Gore na Florida, em 2000, escreveu no Wall Street Journal, esta semana, um artigo intitulado ‘Os resultados desta eleição não serão revertidos’. Mas afinal, concretamente, quais são as queixas de Trump, que alguns dos canais americanos até recusaram transmitir, qualificando-as como comprovadamente falsas?

Se formos ao Twitter do Presidente ou dos seus apoiantes, encontraremos uma miscelânea de diferentes histórias. Desde posts sobre o chamado ‘Sharpiegate’, qualquer coisa como ‘escândalo da caneta de feltro’, uma conspiração que alegava que eleitores de Trump no Arizona foram enganados a votar com caneta de feltro, para que o seu voto fosse invalidado, o que não acontece; até um vídeo viral de «80 boletins de voto em Trump a ser queimados», partilhado por um dos filhos de Trump, Eric. As autoridades de Virginia Beach, onde foi filmado o vídeo, explicaram que os boletins eram falsos, não tendo sequer código de barras.

Contudo, o grande tema das alegações da campanha Trump são sem dúvida os votos por correspondência, que aumentaram significativamente em tempos de pandemia. Em 2016, uns 33 milhões de americanos votaram por correio; Este ano, foram mais de 65 milhões, a vasta maioria democratas, segundo as sondagens.

Com os correios assoberbados pela enxurrada de votos e receios de que muitos não chegassem a tempo, vários estados aprovaram medidas para estender o prazo de chegada. No caso da Pensilvânia, um swing state crucial, os boletins poderiam chegar até três dias depois da eleição, algo contestado judicialmente pelos republicanos. Perderam antes das eleições, mas acabaram por conseguir que o Supremo Tribunal ordenasse que os cerca de 10 mil votos nestas condições fossem contados separadamente, com o processo judicial pendente.

Mesmo assim, este caso não fará diferença no resultado. O democrata Joe Biden venceu a Pensilvânia por mais de 60 mil votos, e mesmo perdendo a Pensilvânia continuaria a ter votos no colégio eleitoral suficientes para vencer as presidenciais.

Os restantes casos judiciais estão ainda mais longe de ser significativos. Em estados como a Geórgia, Arizona, Pensilvânia ou o Nevada, os republicanos avançaram com processos para contestar votos na ordem das centenas, por vezes até nas dezenas. «Alguns dos processos impostos por parte de Trump parecem ter sido feitos à apressadamente, com erros de ortografia, erros processuais, e poucas provas. Os juízes têm-se mostrado céticos», escreveu a Associated Press.

Num desses processos, a campanha Trump alegava que em Filadélfia não for permitido a observadores republicanos assistir à contagem. Questionado pelo juiz Paul Diamond, nomeado por George W. Bush, o advogado da campanha Trump admitiu que tinham «um número não zero de pessoas na sala», segundo o Washington Post. Levando o juiz de Filadélfia a retorquir: «Peço desculpa, então qual é o problema?», e a arquivar sumariamente o caso.

A qualidade dos testemunhos não deverá aumentar. A campanha Trump já estabeleceu uma linha telefónica para denúncias de fraude eleitoral, que foi inundada de chamadas falsas ou trocistas. O vice-governador do Texas, Dan Patrick, chegou a oferecer um milhão de dólares em recompensas por provas que levem a condenações por fraude eleitoral, esta semana.

 

Fraude sistémica?

Neste ponto, para reverter o resultado eleitoral, seria necessário «provar fraude sistémica, com votos ilegais nas dezenas de milhares», escreveu Karl Rove no Wall Street Journal. «Não há qualquer prova disso até agora. A não ser que apareça alguma rapidamente, as hipóteses do Presidente no tribunal vão cair a pique».

Talvez a alegação mais consistente do Presidente seja a de que os mortos estão a votar, apesar de, mais uma vez, não haver prova disso. São rumores que «aparecem em todas as eleições», explicou à Euronews Jason Roberts, professor de Ciências Políticas da Universidade da Carolina do Norte. São alimentados por falhas momentâneas no registo da contagem, que desta vez foram partilhados em printscreens virais nas redes sociais, «quando a análise é feita, descobre-se que a vasta maioria das discrepâncias, ou coisas que parecem como potencial fraude eleitoral, são erros humanos».

Aliás, as alegações de mortos a votar aparecem mesmo entre eleições, como justificação de legislação para apertar as regras eleitorais. «O sucesso de legisladores democratas em empurrar para o lado procedimentos de voto claros, rigorosos, a favor de procedimentos elásticos e ‘inclusivos’ convida à manipulação», escreveu o Manhattan Institute for Policy Research, já em 2004, num artigo em que apelidava o Motor Voter Act, assinado por Bill Clinton em 1998, que facilitava o registo de eleitores com recurso à carta de condução, uma «máquina de corrupção».

A questão é que as regras eleitorais americanas – que nem sequer têm registo automático de eleitores, ao contrário de países como Portugal – já são das mais restritas do mundo, entre países democráticos, explicou ao SOL Michael Li, analista do Brennan Center para o direito de voto.

«Pode surpreender pessoas de outros países, os EUA gostam de se gabar de serem o líder da democracia. Mas da perspetiva da Europa ou de países democráticos da Ásia, é chocante quão difícil é votar aqui», salientou o analista. «Temos de nos registar para votar, muitas vezes os horários são muito restritos, os locais de voto mudam muito, às vezes são muito longe e não são suficientes».

Esta quinta-feira, a Cybersecurity and Infrastructure Security Agency, responsável pelas eleições, repudiou em comunicado as acusações do Presidente de que teria havido fraude informática. «Não há qualquer prova que qualquer sistema informático tenha apagado ou perdido votos, alterado votos ou sido de alguma maneira comprometido».