Suíça pede que se faça o testamento vital face à pandemia

Com o sistema de saúde esticado, o testamento vital pode permitir que os médicos evitem o horrível dilema de escolher quem vive e quem morre.

O sistema de Saúde suíço está sob o peso da segunda vaga, com os cuidados intensivos próximos da sua máxima capacidade. De tal forma que já se pede a quem pertence a grupos de risco que faça o seu testamento vital, especificando se pretendem que se prolongue a sua vida. “Dessa forma, os seus entes queridos, mas também as equipes médicas das unidades de cuidados intensivos, terão apoio na altura de tomar uma decisão, garantindo o melhor tratamento possível, de acordo com a vontade do doente”, lê-se num comunicado da Sociedade Suíça de Medicina Intensiva (SSMI, na sigla alemã), divulgado esta semana

Na Suíça, pioneira no que toca ao direito à morte com dignidade, já há algum tempo que se notava um aumento na preocupação com os últimos momentos de vida. Aliás, durante o confinamento aumentaram em mais de 50% nos pedidos de formulários para fazer o testamento vital nas regiões francófonas e de língua italiana na Suíça, anunciou no final de julho a Pro Senectute, uma das principais organizações suíças de apoio aos idosos – nas regiões de língua alemã adesão à prática sempre foi mais elevada, por isso pressupõem que o aumento aí também terá sido significativo, assegurou Tatjana Kistler, porta-voz da Pro Senectute, ao Swissinfo.

“Parece-me que devemos deixar as pessoas de uma certa idade partirem tranquilamente”, afirmou Susanne Degives, uma moradora de Genebra nos seus oitenta anos, que também optou por fazer o seu testamento vital face à pandemia. “Eu não quero acabar como um vegetal”, explicou à Radio Télévision Suisse. “Não quero passar pelo sofrimento de estar com falta de ar e não consegui respirar”.

O número de pessoas que poderão estar nessa situação aumenta. Num país com 8,5 milhões de habitantes, incluíndo uma grande comunidade portuguesa, não é apenas o número de novos casos – foram registadas 6 mil novas infeções na quarta-feira, depois de quase chegarem aos 22 mil em 24h no início do mês – que preocupam as autoridades. O grande problema é que o surto parece agravar-se sobretudo entre os mais idosos.

Só na primeira semana de novembro, morreram 1702 pessoas na Suíça com mais de 65 anos, um número de óbitos 50% superior ao que seria de esperar nesta altura, segundo o SSMI. E enquanto a curva de novas infeções suíça baixa, as mortes continuam a aumentar.

O Governo já expandiu o apoio dos militares nos hospitais, na vertente de logística e de rastreio de contactos, que deverão executar pelo menos até março, mas por agora o drama continua. “Já não podemos aguentar tantas chamadas”, desabafou Eric Golay, um condutor de ambulância suíço, à agência ATS.

 

Escolher como morrer

Na Suíça, os médicos tentam ao máximo que sejam os pacientes a decidir como querem morrer – mas já houve países em que isso não chegou, como em Espanha e Itália, onde já é possível fazer um testamento vital. Em março, o mundo assistiu ao horror de médicos terem de decidir quem vive e quem morre, bem como atos de bravura como o de Giuseppe Berardelli, o padre de Bergamo que faleceu após ceder o seu ventilador a um doente mais jovem – a esperança é que não se repita, mas temos um inverno duro pela frente.

Afinal, nestes casos limite, como se decide o que fazer, quando tratar um paciente implica que outro morra? Uma das hipóteses é priorizar pacientes mais novos e com menos condições prévias, ou seja “maximizar benefícios em termos de vidas salvas e de número de anos salvos”, explicou Ezekiel Emanuel, diretor do departamento de Ética e de Políticas de Saúde da Universidade da Pensilvânia, à BBC. Foram essas as diretivas seguidas em Itália, por exemplo, mas não deixaram de ser alvo de críticas, como é natural num tema tão complicado.

Um dos riscos dessa abordagem é relativizar o que significa uma vida humana, argumentou numa carta aberta a Disability Rights, uma ONG britânica pelo direito de pessoas com deficiência. “A nossa hipótese individual de beneficiar de tratamento, caso tenhamos covid-19, não deve ser influenciada por como as nossas vidas são vistas pela sociedade”.