Por Elsa Severino
Arquiteta Paisagista
O que posso dizer sobre o Mestre que não seja do conhecimento público? Apenas a minha visão do professor talentoso, amistoso e generoso, de quem fui aluna e com quem colaborei no seu ateliê desde 1983.
Gonçalo Ribeiro Telles era um homem bom, um artista, intuitivo, um génio da natureza. Descodificava todas as matérias reduzindo-as à sua essência, para nos fazer entender o nosso mundo natural. Foi professor, ministro, político, recebeu condecorações e os maiores prémios internacionais enquanto arquiteto paisagista, mas nada disso lhe roubou a genuína alegria e a simplicidade dos gestos, ou tão pouco mudou o rumo dos seus combates, assentes nas questões ambientais e na dignificação humana.
Enquanto homem erudito e muito prestigiado, não se coibiu de proteger as árvores, mas também de lutar contra o avanço do eucalipto; ‘inventar’ as hortas sociais, ao mesmo tempo que desenhava o jardim da Gulbenkian; lançar avisos sobre a escassez de água doce e denunciar a origem das inundações em Portugal. Implementou o ordenamento do território, defendeu as reservas naturais e glorificou a paisagem portuguesa.
‘Deus não pode proteger as árvores dos imbecis’
Nos anos cinquenta do século passado, lança com Francisco Caldeira Cabral o livro A Árvore em Portugal. Inovador mais uma vez, pois vários ecologistas admitem presentemente que «a nossa compreensão das árvores é relativamente recente».
Este livro continha um rigor científico tal, que serviria de base a um correto ordenamento florestal; sabemos hoje em dia que as matas autóctones estão em extinção e que a floresta portuguesa é dominada pelo eucalipto, sendo que o ‘nosso’ carvalhal, a vegetação marginal ou alpina vivem uma eterna agonia.
‘O homem é o escultor do seu ambiente’
A incoerência vegetal presente no território leva-nos à desertificação, aos incêndios florestais («o país arde no verão») e às inundações do presente e futuras. Esta é a tempestade perfeita em que vivemos atualmente. A correlação que GRT fez entre a ‘singela’ árvore e os graves problemas ambientais com que nos deparamos é perfeita, mas também reveladora de um conhecimento profundo da nossa paisagem. Ele foi o ‘Jardineiro de Deus’ e adotou a árvore como suporte de uma tese que explica a realidade ambiental portuguesa.
‘Crescimento não é progresso’
Com uma visão humanista e cultural, desmascarou até ao final dos seus dias o modelo de crescimento económico convencional, e avisou que este era o principal responsável pela «macrocefalização de Portugal, com o consequente subdesenvolvimento das regiões do interior». Grande conhecedor do mundo rural, defendeu sempre o primado da Natureza versus um crescimento artificial, assente na destruição dos nossos recursos naturais, com a ‘morte’ da paisagem e o consequente empobrecimento dos portugueses; escreveu Uns Comem os Figos, numa clara alusão ao fosso entre ricos e pobres devido à má gestão do território.
Ecodesenvolvimento
Assim, apresentou muito antes de outros este modelo de desenvolvimento. Lembrou-nos que um novo equilíbrio da Natureza nem sempre é favorável às atividades humanas, tais como as conhecemos. Referia-se obviamente a certas indústrias poluentes, à agricultura intensiva, ao avanço do eucalipto, à expansão urbana especulativa, à destruição do litoral, entre outras atividades.
GRT referia inúmeras vezes: «Tudo é paisagem»; atormentava-o a simplificação e degradação das paisagens quer urbanas quer rurais, com a consequente diminuição da biodiversidade e da vida silvestre, o que o levou à criação das figuras legislativas da REN (Reserva Ecológica Nacional) e da RAN (Reserva Agrícola Nacional), além da criação dos Parques e Reservas Naturais, como é sobejamente conhecido.
Continuum naturale e o Corredor Verde de Monsanto
Não deixa para trás a urbe e pretende «ruralizar a cidade»; abraçou o conceito de continuum naturale, introduzido – segundo ele – pelo (seu) Prof. Caldeira Cabral, e que se traduz na implementação da reserva ecológica em meio urbano. Na cidade temos de «conseguir corredores verdes, que assegurem a presença da Natureza; deverão ter o mesmo papel que as matas e sebes têm para os campos cultivados», escrevia com o entusiasmo de sempre. Ao defender esta presença biológica na cidade, argumentava que uma expansão urbana em mancha de óleo tende a «limitar a Natureza a áreas cada vez mais restritas, e a tornar o mundo mais artificial e feio e pobre em recursos naturais».
‘O país que queremos ser’
Um regresso à Natureza? Sem dúvida. O caminho é longo e exige mudanças. As alterações climáticas mudarão certamente esta lógica de crescimento e ajudarão a reinventar o nosso modelo de desenvolvimento. Uma nova forma de produzir e de consumir, e até novas formas de fazer política? Certamente.
Com a pandemia, anuncia-se uma nova sociedade e até uma civilização diferente.
Para construir o futuro, um ‘mundo novo’, temos de conhecer o nosso passado. E esse conhecimento foi-nos transmitido por Gonçalo Ribeiro Telles.
Obrigada Mestre.