Por João Maurício Brás
Estamos agora na ressaca de um episódio originário da pós-modernidade no campo da política, o ‘affaire Trump’.
Falhámos o essencial enquanto nos centramos na pessoa concreta e não no que ele significou. Trump funcionou como um bode expiatório de todos os graves problemas que as democracias enfrentam, dos quais a degradação da imprensa em agência de comunicação é um mal maior, assim como a confirmação que a democracia oficial está sob suspeita de uma parte significativa das pessoas. O número da abstenção em todo o Ocidente é cada vez mais uma decisão consciente, como a opção pelos políticos antissistema. Nenhuma destas constatações impede a imputação de defeitos e são muitos ao papel de político que Donald Trump representou. Escolher Trump não foi uma opção, mas principalmente um sintoma.
A democracia está muito doente. O espetador passivo e reativo limita-se a apoiar de modo clubístico, Trump ou Biden, porque perdeu algo fundamental, o pensamento complexo, que permite não ficar preso a uma escolha imposta, há outras alternativas, tem que haver, para invertermos a espiral descendente de degradação e desencanto na qual se arrasta esta democracia. Até Obama, sem duvida um homem decente, educado, eloquente e motivador, foi apenas mais uma peça de uma espécie de democracia como campanha publicitária.
Trump foi o exemplo de um presidente na era da pós-modernidade política, e ele foi uma consequência e um sintoma, não uma causa ou um fator. São os democratas que destroem a democracia que geram os Trumps, os Bolsonaros e outros. Não são eles que estão a destruir a democracia, surgem porque esta está em processo acelerado de desconstrução. Descobrimos já faz tempo que a cultura Ocidental era opressiva, racista, colonialista, patriarcal, machista e xenófoba. Trump surgiu num tempo em que já estava abolida também a verdade, a realidade, a objetividade a racionalidade e os valores duradouros.
Já nada é verdade nem mentira, tudo é contexto, discurso e perspetiva como anunciaram Deleuze e Foucault. Já ninguém ganha ou perde, tudo depende do ponto de vista. Estamos em 2020, tempo em que supostamente a democracia teria amadurecido o suficiente para projetos e escolhas confiáveis, que o nosso bem-estar, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, as vantagens do uso da racionalidade alcançariam um patamar de felicidade inédita. Afinal o progresso, a ideia que o ser humano é dotado de perfectibilidade ilimitada tal como a sociedade, não corresponde aos factos. Vivemos num tempo em que aumenta a paranoia, teorias conspiratórias, irracionalidade e sectarismo e até o ódio dentro das próprias comunidades cresce exponencialmente, o Ocidente odeia-se a si mesmo, e divide-se em grupos monomaníacos e demenciais à esquerda e à direita.
Vivemos numa era de antipolítica, e precisamos de regressar à política compolíticos verdadeiros, e projetos que unam as sociedades e impeçam o que bem pode ser a somalização das democracias ocidentais.
Ademocracia, o uso da razão, e as respetivas conquistas, não são aquisições definitivas. Se progredimos de facto no plano tecnológico, no plano político e ético avançamos, mas também podemos recuar. Há conquistas que têm de ser renovadas de modo permanente. Trump poderá ser apenas o início de outras formulações mais bizarras e perigosas. Quanto mais degrada estiver a democracia mais degradantes serão as suas opções.