A minha única amiga americana deu-me um raspanete por ter chamado «velho senil» ao Joe Biden. Deveria, na sua opinião, ter apresentado o meu ponto de vista de uma forma mais subtil. Talvez tenha razão. Fui injusta e um pouco arrogante. Não mudei de opinião, mas reconheço duas proezas ao novo Presidente americano: livrou-nos de Trump e escolheu Kamala Harris como vice-Presidente. Pode ser que um dia os norte-americanos estejam preparados para vê-la à frente do país.
Mas não é sobre política que tenciono escrever. Deixo esse assunto para os entendidos na matéria. Prefiro debruçar-me sobre os idosos, as pessoa de idade, os velhotes, os velhinhos. Evito certos eufemismos, por isso, chamo-lhes simplesmente… velhos! Cada um deve assumir a sua idade sem medo nem pudor. Mais difícil que envelhecer é aceitar que o corpo muda e a cabeça também, embora a ritmos diferentes. O tempo, às vezes, pode ser cruel. Muitos têm dificuldade em ver nos velhos a criança, o jovem e o adulto de outros tempos. Como se já tivessem nascido com cabelos brancos e rugas.
O mundo ocidental não põe os mais velhos num pedestal, antes pelo contrário. Prefere ignorá-los, fazendo de conta que já não existem. E a situação atípica que vivemos veio degradar a sua já frágil condição de vida. O vírus isolou-os do resto do mundo. Em nome da covid são mantidos prisioneiros em gaiolas douradas (alguns) ou em sítios indecentes (a maioria). Não recebem visitas dos filhos nem dos netos, não vão a almoços de família, não passeiam no parque, não dão comida aos patos, não jogam às cartas. Nem sequer têm direito a certos tratamentos porque as equipas médicas estão mobilizadas noutra frente. Para muitos deles, os cuidados paliativos deixaram de ser uma prioridade. Para quê? Já estão no fim da vida. Resta-lhes ver desfilar as horas, que parecem intermináveis.
Há velhos que vivem em quartos de luxo trancados à chave para evitar que possam circular no corredor da instituição. São medicados para dormir mais horas do que as necessárias. Imersos num estado vegetativo, vislumbram a luz do dia através de grades e não se podem despedir dos amigos que partiram vítimas da covid ou de outra doença qualquer. Isto acontece, regularmente, em lares que não custam menos de 3.000 euros por mês. E todos somos cúmplices porque é mais fácil ignorar. Cada um já tem o suficiente com os seus problemas.
O contacto intergeracional é vital. Contribui para a construção de uma humanidade mais solidária e resiliente. Os que nunca conhecemos os nossos avós vivemos eternamente com saudades do que nunca foi e sofremos um certo vazio emocional. Que sorte têm aqueles com histórias para contar das tardes passadas a fazer bolos com essa avó doceira, das anedotas do avô bem disposto, das brincadeiras, dos disparates e dos afetos partilhados. Invejo os que teceram uma cumplicidade ímpar com os velhos sábios da família. E todos os outros que iam de férias para a terra dos avós.
A vida normal ficou em suspenso a partir do momento em que os médicos começaram a ter que decidir quem salvam e quem deixam morrer. Os governos atuam em nome dos velhos quando nos impõem o confinamento. Dizem eles. Os membros da família recusam abraços e beijos aos avós para evitar o contágio. Mas todos se esqueceram de perguntar-lhes como tencionam passar os últimos anos das suas vidas. Talvez alguns prefiram uns breves instantes de liberdade aos longos meses de solidão. Mas seria eticamente inaceitável não ostracizar os velhos pelo bem da sua saúde. Que sociedade ousaria correr o risco?
Nenhuma medida governamental conseguirá travar o inevitável: os velhos morrem lentamente. Em silêncio e sem incomodar. Uns do vírus e outros de depressão. A tristeza também mata. Muitos recusam comida e água e nem as perfusões os salvam. Outros fecham os olhos e esperam que a morte chegue. Afortunados são os que conseguem sobreviver a uma liberdade condicionada e são ainda mestres do seu corpo e da sua mente.