No dia 13 de setembro de 1926, os espetadores que enchiam por completo o Stade de l’Huveaune, em Marselha, contados em mais de 15 mil, nem queriam acreditar no que se desenrolava na sua frente: um grupo de jogadores de râguebi neozelandeses, denominados como a equipa dos NZ-Maoris, exibiam um espetacular grito de guerra acompanhado por uma dança que estava preparada para pôr em sentido qualquer adversário. «Tena tatou katoa/Tena tatou e runga e te kaupapa o te ra nei», berravam a plenos pulmões. O adversário dessa tarde, o Olympique de Marselha, que, recorde-se, começou por ser um clube de râguebi antes de se tornar, igualmente, um dos mais importantes clubes franceses de futebol, levou para contar. Os seus jogadores, abalados por algo que raramente se tinha visto na Europa, perderam pelo resultado redondo de 0-87. Tratava-se do sétimo jogo dos Maoris numa digressão que os levou à Austrália, ao Sri Lanka, a França e ao Reino Unido. A qualidade do jogo que tinham para apresentar era sublime. Mereciam todos os adjetivos.
Vamos por partes. Aqueles que também são conhecidos por_Maori All Blacks não são a seleção da Nova Zelândia tout-court e sim uma equipa representativa do país mas com a exigência de que todos os seus jogadores tenham no sangue a maori whakapapa, ou seja, uma genealogia própria da cultura maori.
Continuemos por etapas. Os maoris são um povo natural do Pacífico que surgiram na Nova Zelândia de uma migração proveniente, sobretudo, das ilhas mais a leste da Polinésia em vagas do que se estabeleceu chamar de waka, umas canoas preparadas para percorrerem grandes distâncias. Ora, esta corrente teve lugar entre 1320 e 1350, isto é, muito antes da chegada dos europeus que só aconteceu no início do Século XVII. A cultura maori resistiu corajosamente às influências dos novos migrantes. A linguagem, a mitologia e os artefactos maoris mantiveram-se intocáveis apesar das tentativas crescentes de absorção por parte dos europeus. Até hoje.
A primeira aventura europeia de uma equipa neozelandesa à Europa foi organizada por um fulano chamado Joseph Warbrick, em 1888-89. Tratava-se de um grupo racial muito diversificado no qual cabiam, até, alguns sul-africanos que tinham emigrado para essa zona do Pacífico. Mas a força dos maori nesse grupo foi de tal ordem que impuseram o equipamento totalmente preto e, no início de um jogo no Surrey, um condado situado a sudoeste de Londres, contra a seleção local, e apresentaram o haka antes do jogo. Algo de absolutamente inédito para os embasbacados espetadores ingleses.
O haka
O haka é uma dança guerreira levada a cabo pelos maoris para assustar os inimigos. Acompanhada por uma canção composta por Te Rauparaha, um chefe tribal, líder da tribo de Ngati Toa, que celebrava a sua sobrevivência na Guerra dos_Mosquetes, uma longa série de mais de três mil batalhas que envolveu os maoris e os colonos neozelandeses de 1807 a 1837. O movimento preparatório para o conflito partia, assim, da voz do líder que gritava: «Taringa whakarongo! Kia rite! Kia rite! Kia mau!». («Ouçam com atenção! Preparem-se! Alinhem-se! Sejam rápidos!»). A resposta era imediata e em coro: «HÍ!». («Sim!»).
Não havia registos significativos dessa viagem dos neozelandeses a Inglaterra quando os NZ-Maoris desembarcaram no porto de Marselha, aí sim, já com uma equipa composta por gente que partilhava o mesmo sangue e as mesmas raízes culturais. Nos dia que se seguiram à espantosa exibição de Marselha, os Maoris All-Blacks foram dando verdadeiras lições de como jogar râguebi em Dijon, frente ao Burgundy (27-3), em Grenoble, contra o_Comité des Alpes (23-6), em Avignon, contra o Comité du Littoral (29-8), e em Lyon, contra o Comité Lyonnaise (14-3). Os opositores tombavam como tordos à sua passagem. De tal forma que depois de cumprirem um total de 40 jogos, regressaram a casa com 31 vitórias, dois empates e apenas sete derrotas, provando à saciedade que o melhor râguebi do mundo já tinha uma pátria e estava fortemente instalado nela.
Divergências…
Nos dias que correm, são muitas as versões do haka utilizadas pelas seleções e equipas de râguebi do Pacífico. Mas a digressão de 1926 foi a que transformou o grito de combate numa novidade internacional, a tal ponto que um jornal alemão mandou de propósito um repórter para seguir os jogos dos maoris em França para escrever a história dessa surpreendente iniciativa. Uma foto é absolutamente marcante. Foi tirada em Paris, no Estádio de Colombes, no dia 26 de dezembro. O frio era tanto que o capitão dos neozelandeses surgiu de fato na frente dos seus companheiros, desenhando a dança tão espetacularmente esperada. A vitória dos que passaram a ser conhecidos por Invencíveis (12-3), num campo absolutamente impróprio até para plantação de tubérculos, foi tão natural como todas as anteriores. A imagem ganha ainda mais impacto quando permite vermos, em segundo plano, operadores de imagem registando em película os curiosos movimentos dos rapazes que vinham lá do outro lado do mundo.
A partir desse momento, com toda a gente a interessar-se pelo exótico bailado, iniciaram-se estudos sobre quem teriam sido os precursores do haka. Mas também começaram a surgir controvérsias sobre a sua legitimidade. Afinal, para muitos, desporto ainda não é guerra. Vários passaram a ser os casos de adversários a ignorarem o haka, algo que deixa os neozelandeses de cabelos arrepiados, convencidos de que é um gesto de desrespeito pela sua cultura. Em 1989, em Landsdowne Road, em Dublin, a seleção da Irlanda enfrentou o haka dos All-Blacks formando um V e aproximando-se a passo e passo do bailado dos seus opositores. No final da dança, os capitães de equipa estavam frente a frente, separados por escassos centímetros. Depois desse episódio, muitos outros se sucederam, como o dos quartos-de-final do Mundial de 2007 quando a_França resolveu surgir em campo com camisolas prateadas – contrariando o peso do negro – e formar fileiras de forma a impedir o desenrolar do haka dos neozelandeses. Não se livraram de uma multa mas venceram por 20-18. Sinal de que também é possível baralhar a força lendária de Te Rauparaha.