Antes da pandemia, o problema da habitação em Portugal já era um problema da classe média, muito além dos mais vulneráveis. A pandemia expôs os mais precários. Expôs a falta que faz uma política de habitação integrada digna para o envelhecimento. Expôs, com a paragem da economia, a dificuldade de chegar ao fim do mês sem saber de onde virá o dinheiro para pagar a renda ou a prestação do empréstimo.
Hoje, a União Europeia de Ursula von der Leyen quer segurar as pessoas nas suas habitações e com os seus empregos e vai enviar-nos milhares de milhões a fundo perdido para o efeito. Hoje, não temos a troika da austeridade com quem o primeiro-ministro José Sócrates assinou o memorando de entendimento em 2011.
No Plano de Recuperação e Resiliência da UE, Portugal terá 1.633 milhões para habitação, 250 milhões para comunidades desfavorecidas, 620 milhões para melhorar a eficiência energética dos edifícios e ainda uma parcela para políticas de envelhecimento. O total andará próximo dos 3 mil milhões de euros.
Antes da pandemia tínhamos um governo sem plano e sem dinheiro. Agora, temos um governo sem plano e com 3 milhares de milhões. Em matéria de habitação, ao avançar sem plano, a solução pode ser pior do que o problema.
Não se gastam 3 mil milhões sem um programa nacional. Em tempos de fome, sem um programa nacional nem sequer se deviam gastar os 250 milhões que já estão comprometidos para habitação social no Orçamento de Estado de 2021.
Somos um país com mais de cem anos de políticas de habitação. Temos no terreno inúmeras provas que é possível fazer bem, mas também sabemos que há bairros de habitação social feitos ontem que são os maiores problemas sociais de hoje. Será que querem construir habitação social de baixo custo sem propriedade privada e com casas atribuídas por sorteio a poucos, deixando de fora muitos? Qual é a justiça social de ganhar uma casa por sorteio?
Não falta habitação social. Não falta sequer habitação. Em Portugal há uma habitação e meia para cada agregado familiar. Falta capacidade de planear, capacidade de desenhar o território e capacidade de imaginar habitação e cidades onde as pessoas possam e queiram morar.
Em vez de dezenas de programas que se atropelam, ou de uma manta de retalhos de estratégias construídas município a município, precisamos de um desígnio nacional de habitação para construir as cidades que queremos.
As cidades que queremos têm uma política de habitação integrada, com população diversificada, multigeracional e interclassista, incluindo pequenos núcleos de apoio para envelhecer, com dignidade, junto dos nossos e das nossas comunidades.
As cidades que queremos acreditam na iniciativa privada além Estado e no setor social. Num mercado de habitação livre de burocracias a coexistir com um outro mercado, condicionado e autossuficiente para responder a quem precisa, construído sobre as propriedades devolutas do Estado.
As cidades que queremos não segregam. Não deixam ninguém para trás e garantem oportunidades de uma vida melhor a todos os que as queiram agarrar.
As cidades que queremos dão corpo à ideia de um homem que morreu há 40 anos, ao serviço deste país enquanto primeiro-ministro. Francisco Sá Carneiro tinha apenas 46 anos quando morreu, menos um do que eu tenho hoje. Mas é nas suas palavras que encontro as cidades de liberdade, justiça social e solidariedade que Portugal hoje precisa.