John levantou-se bem disposto nessa manhã de 8 de dezembro de 1980. A vida corria-lhe de forma tranquila. Dois meses antes, a 9 de outubro, comemorara o seu 40.º aniversário na companhia da mulher, Yoko Ono, e do seu filho mais novo Sean, de cinco anos. Curiosamente, Sean nascera exatamente no mesmo dia de John, pelo que a festa foi a dobrar.
John Winston Lennon, natural de Liverpool, músico, mudou-se para Nova Iorque em agosto de 1971. Não tardou a estar a braços com a embirração do presidente Richard Nixon e com a sua administração pelas posições diretas que tomava contra a Guerra do Vietname. As batalhas legais contra os Serviços de Emigração propagaram-se durante seis anos. John estava no fio da navalha. Apesar das continuas ameaças de deportação e das recusas sobre o seu direito de residência permanente, o assunto acabou por resolver-se a contento. O álbum que publicou em junho de 1972, juntamente com Yoko, Some Time in New York City, ajudou a aumentar a embirração de determinada faixa da sociedade americana – sobretudo nova-iorquina – contra o casal de excêntricos que teimavam em viver numa espécie de limbo e à margem de uma sociedade hipocritamente puritana.
«Everyday, we used to make it love/Why can’t we be making love nice and easy?/It’s time to spread our wings and fly/Don’t let another day go by my love/It’ll be just like starting over, starting over…». Foi com estas palavras, editadas num single que tinha, na outra face, Kiss Kiss Kiss, de Yoko Ono, que John abriu as portas ao último disco que viria a gravar: Double Fantasy. (Just Like)Starting Over viu a luz do dia a 20 de outubro, nos Estados Unidos. Chegou quatro dias mais tarde a Londres. John já não tinha contemplações para com o seu país natal. O tempo de ter sido um dos Beatles – há quem diga que o mais importante de todos – tratou de o empurrar para aquela parte do risco rígido da memória que funciona como uma gaveta de olvido.
O primeiro passo estava dado. Double Fantasy estruturava-se dentro da razoabilidade dos prazos, a Geffen Records prometera que o colocaria no mercado nos primeiros dias de novembro e era mais um motivo de satisfação para John que decidiria tirar cinco anos sabáticos para se dedicar por completo ao acompanhar do crescimento de Sean. Estava de volta. E isso iria mexer com os amadores de música um pouco por todo o universo.
Ao contrário do que os que faziam parte do círculo profissional de John esperavam, a recepção da crítica a Double Fantasy não se limitou a ser fria. Foi devastadora. Seria preciso que John Lennon aparecesse morto para que o disco trepasse pelas tabelas de vendas e chegasse a número 1 nos Estados Unidos. Mas isso daqui a mais um pouco.Para já, John continuava vivo.
No dia 5 de dezembro, a revista Rolling Stone trazia John Lennon na primeira página e, lá dentro, uma das mais fortes frases que proferiu durante a sua carreira: «Give peace a chance, not shoot people for peace. All we need is love. I believe it!». Era Lennon a ser Beatle? «There’s nothing you can do that can’t be done/Nothing you can sing that can’t be sung/Nothing you can say, but you can learn how to play the game/It’s easy/Nothing you can make that can’t be made/No one you can save that can’t be saved/Nothing you can do, but you can learn how to be you in time/It’s easy/All you need is love/All you need is love/All you need is love, love/Love is all you need»: regresso a Sgt.Pepper’s? Ou a ThemagicalMystery Tour? Perguntas que ficaram sem resposta.
As últimas fotos
Às 11 horas da manhã do dia 8 de dezembro de 1980, a fotógrafa Annie Leibovitz, uma das profissionais mais famosas desse tempo e que trabalhava precisamente para a RollingStone, surgiu no apartamento de Lennon para fazer uma série de imagens anteriormente agendadas. John tinha acabado de voltar do barbeiro onde exigira um corte à moda dos Teddy Boys dos anos 50. Lennon e Yoko ocupavam um dos andares do Dakota Building, um edifício art nouveau inaugurado em outubro de 1884 e situado na esquina da 72nd Street e Central Park West, em Manhattan. Tudo quanto era gente famosa habitou, nem que fosse por um par de semanas, o Dakota, desde Boris Karloff a Jack Palance, de Judy Garland a Laureen Bacal, de Leonard Bernstein a Rudolf Nureyev.
Como sempre, Annie quis ser arrojada. Pediu a John e Yoko que posassem nus para ela. Yoko não esteve pelos ajustes. A melhor imagem que Leibovitz trouxe do Dakota Building nessa manhã foi a de Ono vestida, deitada de costas, com Lennon completamente nu, encostado a ela em posição fetal. Mas John e Yoko ficaram tão convictos da força da foto que não resistiram a comentar: «You’ve captured our relationship exactly».
John Lennon, bem como Yoko Ono ou Annie Leibovitz não podiam adivinhar que o primeiro estaria morto daí a menos de doze horas. Conversaram alegremente sobre o trabalho feito e todos se demonstraram felizes com ele. A foto só viria a público no dia 22 de janeiro de 1981 – foi capa da Rolling Stone.
O relógio marcava meio-dia. A hora da sombra mais curta. Paul Goresh, um velho amigo de John e Yoko era esperado a qualquer instante. Atrasava-se. O motivo do atraso era um fulano de 25 anos chamado Mark Chapman. Tinha um exemplar de Double Fantasy debaixo do braço e pregava a Goresh aquilo que se pode designar como uma grande estucha. Não deixava de fora os pormenores ao longo daquele ataque de verborreia.Paul fixou apenas que o moço tinha vindo do Havaí e ansiava por um autógrafo com dedicatória de John Lennon no disco que transportava como se uma preciosidade se tratasse. Goresh libertou-se do importuno como pôde. E nem se deu ao trabalho de contar a John que havia um apepinador da pior espécie à sua espera quando saísse de casa.Até porque o apartamento do Dakota Building voltava a estar no centro de um furacão: DaveSholin, a grande figura da Sans Francisco’s RKO Radio, viera a Nova Iorque de propósito para entrevistar Lennon e os seu técnicos espalhavam fios e microfones por toda a sala. Mais uma vez, Lennon, não deixou de ser profético ao mesmo tempo que exibia uma satisfação contagiante: «I consider that my work won’t be finished until I’m dead and buried and hope it’s a long, long time». Há quem diga que falar da morte é chamar por ela…
O autógrafo
John Lennon voltou a sair de casa nesse dia 8 de dezembro de 1980 pelas 16h30. Sean, acompanhado pela sua nannie, tinha vindo de uns tempos na sua casa de Long Island. John brincou com o miúdo durante um pouco e, em seguida, foi reencontrar-se com a equipa da RKO nas instalações da Record Plant, em Midtown, onde estava a preparar o seu novo single, Walking on Thin Ice. Mal ultrapassou a porta a porta do edifício em direção à rua foi abordado por uns excitadíssimo Mark Chapmann. Mark estendeu-lhe a sua cópia de Double Fantasy sem ser capaz de articular uma palavra, tal era o seu estado de nervosismo. Com a maior paciência do mundo, Lennon limitou-se a perguntar: «Queres um autógrafo no disco?». Chapman abanou freneticamente a cabeça num sim atoleimado. Paul Goresh, de máquina fotográfica na mão, registou o acontecimento. O assassino e a sua vítima lado a lado. Uma metáfora da estranha condição humana. Depois, à boleia de DavidSholin, John, Yoko ePaul dirigiram-se ao estúdio. Lennon aproveitava para filosofar sobre os seus tempos histéricos e psicadélicos dos Beatles: «Maybe in the ‘60s we were naïve and like children and later everyone went back to their rooms and said, ‘We didn’t get a wonderful world of flowers and peace… The world is a nasty horrible place because it didn’t give us everything we cried for’. Right? Crying for it wasn’t enough!».
O produtor Jack Douglas esperava por John na Record Plant. Havia algo na letra de sua nova canção que não agradava totalmente a Lennon. Passaram algum tempo a escutar repetidamente o pedaço da música em causa: «Walking on thin ice/ I’m paying the price/ For throwing the dice in the air/ Why must we learn it the hard way/ And play the game of life with your heart?/ … I may cry some day/ But the tears will dry whichever way/ And when our hearts return to ashes/ It’ll be just a story/ It’ll be just a story…». Mais uma vez parecia que a nuvem das premonições perseguiam John Lennon no seu último dia sobre a face da Terra. Ele pegou na guitarra e ensaiou o acompanhamento para a parte lírica que acabara de ouvir. Depois gravou-o numa faixa. A sua faixa derradeira. A sua gravação derradeira. Estava feliz. e Yoko também. A letra e a música encaixavam-se tal e qual ele desejara. O trabalho revelava-se proveitoso.
O dia fora longo. Sem mais compromissos para cumprir, o casal resolveu regressar ao seu apartamento no Edifício Dakota. Dezembro é um mês duro em Nova Iorque. O céu estava negro de baquelite sobre Central Park.
Cinco tiros!
Quando a limusina deixou John e Yoko em frente à porta de casa, Lennon não deixou de reparar que o homenzinho que lhe pedira um autógrafo na capa de Double Fantasy sem ser capaz de articular duas palavras continuava de plantão no mesmíssimo local onde o encontrara cerca de seis horas antes. Era, sem dúvida, um tipo estranho. Sinistro mesmo.
Mark Chapman nasceu no Texas, filho de um militar e de uma enfermeira, e foi desde muito criança vítima de abusos sexuais e psicológicos. Já passara por uma tentativa de suicídio e, recentemente, encontrara um trabalho em Honolulu, Havaí, onde vivia com a mulher. Vivia obcecado por uma mensagem subliminar que encontrara nas entrelinhas do livro de J.D.Salinger, The Catcher in the Rye, que teve duas traduções para português, Uma Agulha no Palheiro e À Espera no Centeio. Mark identificava-se plenamente com o adolescente rebelde protagonista da obra de Salinger e convenceu-se que o seu destino estava preso ao assassínio de uma pessoa famosa, confessando mais tarde que tanto o apresentador de televisão Johnny Carsson e a atriz Elizabeth Taylor tinham feito parte da sua lista de possíveis vítimas. O problema com Lennon é que, na cabeça de Chapman, a frase que este tinha proferido aquando da primeira digressão dos Beatles à América – «Já somos mais famosos do que Jesus Cristo» – rodava pelo meio das suas circunvoluções cerebrais como cavalinhos de carrossel.
Às 22h50, John Lennon saiu do automóvel que o transportava. Yoko Ono caminhava ligeiramente mais atrás. Mark Chapman ainda tinha o álbum assinado debaixo do braço esquerdo. Com a mão direita puxou de um revólver calibre-38 e deu cinco tiros em Lennon: quatro balas perfuraram-lhe as costas, a quinta, entrou-lhe pelo peito à medida que John rodopiava sobre si próprio com a violência do embate. Ainda assim, conseguiu dar mais uns passos até cair banhado em sangue e espalhando em redor as cassetes que trouxera do estúdio e lhe enchiam as mãos.
Yoko Ono entrou no Edifício Dakota tomada pelo desespero, gritando: «John’s been shot!!! Jonh’s been shot!!!». O porteiro, Jay Hastings, contactou imediatamente a polícia e os serviços médicos. O inspetor Steve Spiro chegou ao local do crime excatamente no momento em que uma ambulância carregava John para o Roosevelt Hospital da 59th Street, junto a Central Park.
Todos os esforços feitos pelos médicos do hospital foram baldados. Não houve forma de evitar a morte de John Lennon. Às 23h15 foi declarado oficialmente morto. Yoko entrou num estado de histerismo incontrolável. Repetia frases como num mantra: «‘It’s not true. I don’t believe you. You’re lying!». Finalmente caiu em si e preparou-se para dar a notícia a Sean. Entretanto, Howard Cosell, o narrador desportivo da cadeia de televisão ABC, interrompeu a descrição do que se passava em campo, no confronto de futebol americano entre os New England Patriots e os MiamiDolphins, e tornou-se o primeiro a dar a notícia worlwide. Nessa noite, milhares e milhares de pessoas juntaram-se em frente ao Edifício Dakota para homenagearem Lennon. As manifestações repetiram-se nos dias seguintes e foi a maior exibição coletiva de dor que Nova Iorque viu depois do assassínio de J.F. Kennedy.
Mark Chapman foi julgado no ano seguinte e condenado a prisão perpétua. Ainda há dois meses voltou a requerer uma saída precária e mais uma vez viu negarem-lha. Pela 13ª vez.
No dia 9 de dezembro, Yoko anunciou que não haveria funeral para John Lennon. Foi cremado no Ferncliff Cemetery in Hartsdale e as suas cinzas espalhadas pelo jardim deCentral Park onde se ergueu o seu memorial, chamado muito a propósito Strawberry Fields Forever. Nas semanas que se seguiram, os americanos procuraram os seus discos com uma ânsia de quem não queria dizer-lhe adeus para sempre. (Just Like) Starting Over e Double Fantasy atingiram os topos de venda, tantos nosEstados Unidos como na Grã-Bretanha. Em Janeiro, Imagine e Happy Xmas, repartiram o primeiro lugar dos tops. Os Beatles voltavam a ser lembrados como não se tivessem passado mais de 15 anos sobre a sua rutura: «There’s nothing you can know that isn’t known/Nothing you can see that isn’t shown/There’s nowhere you can be that isn’t where you’re meant to be/It’s easy/All you need is love/All you need is love/All you need is love, love/Love is all you need/All you need is love (all together now)/ All you need is love (everybody)/All you need is love, love/Love is all you need…».
Pode, na verdade, não ter sido assim tão fácil. A morte não tem, por hábito, facilitar a vida daqueles que visita. Quarenta anos se passaram sobre essa noite triste de Nova Iorque na esquina da 72nd Street e Central Park West. Para lá das palavras que se desfazem no ar, fica o pensamento em forma de canção : «But when I see you, darling/It’s like we both are falling in love again/It’ll be just like starting over, starting over…».