De ambos os lados do Canal da Mancha, o tom é cada vez mais soturno, à medida que se aproximam as negociações de domingo, provavelmente a última hipótese de definir o futuro da relação entre o Reino Unido e a União Europeia antes do fim do período de transição, a 31 de dezembro. Teme-se um pandemónio nos transportes aéreos, rodoviários ou ferroviários, e os britânicos poderão ser impedidos de viajar para a UE devido às restrições da covid-19, enquanto enfrentam um aumento nos preços de produtos essenciais.
«Nenhuma preparação dos revendedores pode completamente evitar a disrupção da distribuição de comida e outros bens», avisou na sexta-feira o British Retail Consortium (BRG), principal associação do setor. «É alarmante que ainda não haja nenhum acordo com a UE, expondo os consumidores a uma bomba de 3 mil milhões de libras em tarifas», equivalente a quase 3,3 mil milhões de euros, caso as importações europeias para o Reino Unido sejam subitamente sujeitas às tarifas padrão, disse um dos dirigentes do BRG, Andrew Opie, à Sky News.
Apesar do que está em jogo, o impasse mantém-se em Bruxelas. «A probabilidade de um não acordo é mais elevada do que existir um acordo», admitiu na sexta-feira a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, aos chefes de executivo europeus, segundo a Reuters. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, parece concordar com Von der Leyen, e avisou que há uma «forte probabilidade» das negociações falharem.
«Estas declarações podem ser interpretadas de duas maneiras. Uma, a mais óbvia, é que esta negociação está a ser muito difícil e pode não dar. A outra, é que sirva como forma de aumentar a pressão, para se acabar por negociar alguma coisa», avalia José Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA). «É como se estivéssemos a correr para um precipício e a ver quem pára primeiro», explica o investigador. «Estamos numa corrida contra o tempo, onde ambos os protagonistas querem quebrar o outro com a pressão do relógio».
O pior é que, se um dos lados quebrar demais, arrisca não conseguir aprovar o acordo negociado domesticamente. Bruxelas ainda teria de conseguir a aprovação do Parlamento Europeu e dos Estados Membros para um acordo definitivo; Londres precisa de passar o acordo pelo Parlamento britânico. E ninguém se esquece como é que isso correu da última vez, quando a antecessora de Johnson, Theresa May, voltou a casa após negociar o seu acordo de saída da UE. Foi recebida com chumbo atrás de chumbo em Westminster, desfazendo o seu Governo contra a intransigência dos deputados mais eurocéticos do seu próprio partido.
Ironicamente, Johnson, um dos cabecilhas da oposição dentro dos conservadores a May, pode sofrer o mesmo destino. «É um cenário que não podemos excluir», afirma o investigador do IPRI. «Apesar de ter uma maioria muito significativa, Johnson tem o risco de aparecer com um acordo que possa ser posto em causa pelo seu próprio partido».
Transição após a transição?
Como todas as grandes mudanças históricas, os riscos da saída do Reino Unido da UE muitas vezes são pintados como quase apocalípticos, do caos na fronteira até à escassez de bens essenciais. Para Teixeira Fernandes, ainda não há motivo para alarme.
«Aquele cenário drástico de chegarmos a 1 de janeiro sem qualquer tipo de entendimentos, termos barreiras aduaneiras clássicas, todos os controlos alfandegários e mais alguns, não creio que aconteça, mesmo fracassando as negociações», diz o investigador.
«Assumo que, mesmo no tal cenário mais provável do não acordo, haverá sempre planos de contingência, uma espécie de mini-acordos que manterão minimamente a relação a funcionar, até as negociações evoluírem». Ou seja, uma espécie de período de transição após o período de transição. «Que é o que todas as partes têm dito, até agora, que não iriam fazer», acrescenta Teixeira Fernandes, com uma gargalhada.
‘Cuidado com o que desejas’
A grande questão, mais do que o potencial caos a curto prazo, talvez seja o que acontece a longo prazo. Esta semana, Johnson chegou a pedir aos britânicos que «se preparem para a opção australiana», referindo-se ao famoso «acordo ao estilo australiano» de que tanto fala. Os mais atentos notarão que a Austrália não tem um acordo comercial com a UE. Seguem os termos da Organização Mundial de Comércio, com umas poucas modificações e melhoramentos setoriais, com por exemplo, a diminuição das tarifas no vinho.
«É uma questão de linguagem política, é mais fácil apresentar isso que dizer simplesmente que não há acordo», explica Teixeira Fernandes. «A ideia de um acordo semelhante ao da Austrália tem ressonância com o eleitorado britânico, porque a Austrália é um país com ligações com o Reino Unido, é um país próspero», considera. «Esse modelo é, na melhor das hipóteses, muito limitado ou residual».
Até Malcolm Turnbull, antigo primeiro-ministro australiano, lamentou as «barreiras muito grandes» ao comércio entre o bloco europeu e a UE, que neste momento tentam negociar um acordo. Em declarações à BBC, na sexta-feira, Turnbull aconselhou a Johnson: «Cuidado com o que desejas».
É que, em futuras negociações, Londres arrisca ter uma mão bem mais fraca que Bruxelas. Afinal, em 2019, o mercado europeu absorveu 47% das exportações britânicas, enquanto apenas 4% das exportações da UE se destinaram ao Reino Unido, segundo dados do Center for International Economics.
Desde o início das negociações que ambas as partes se mostram disponíveis a evitar um cenário de tarifas e barreiras comerciais. O problema é que, enquanto Londres ficaria contente em manter o acesso ao mercado único e seguir em frente, Bruxelas exige que, para tal, continuem a seguir algumas regras europeias, por exemplo a nível das leis da concorrência, regulações laborais ou ambientais.
Os líderes europeus «temem que o Reino Unido flexibilize a sua legislação e passe a ser um competidor significativo no mercado único, devido a uma estrutura de custos mais baixa», explica Teixeira Fernandes. «Aí está o cerne do problema, porque o Reino Unido vê essa questão como uma limitação da soberania que pretende ganhar saindo da UE». Estas duas visões tão diferentes do futuro estarão frente-a-frente já este domingo. Aí, veremos quem está disposto a ceder, e quem está disposto a cair no abismo.