Não havia magia em Auschwitz

Há qualquer coisa de anormalmente sombrio na escolha do Shoah como tema de uma novela para por à venda no Natal. É tanto mais sinistro por ser uma ação consciente, deliberada.

por Mário Crespo

Por muita facilidade que se tenha na escrita, leva largos meses a concretizar um projeto destes.

A escolha do assunto, a escrita e a publicação são, foram, atos devidamente ponderados. Desalmada, sinistra e friamente medidos. Aqui é a frieza da indiferença que choca porque quem tenha visto um campo de extermínio nazi nunca mais pode tratar o horror com essa indiferença. Só mesmo quem nunca tenha tido essa experiência, ou a não queira ter, é que pode confabular, no conforto de um qualquer escritório, uma história a tentar dar dimensões humanas à absoluta desumanidade. Por tudo isso, comete-se um crime quando se afirma, naquilo que a filosofia descreve como um pronunciamento performativo, que a morte por Zyclon B é uma maneira mais humana de tirar a vida a quem já estava encarcerado a morrer de fome nos ghettos sem comida.

Comete-se um crime. E não há contexto que ilibe quem isto propala da responsabilidade de estar a validar a justificação do pior que aconteceu na história da humanidade. Quem afirma isto em público não está meramente a fazer uma citação. Ao fazer o pronunciamento apropria-se do conceito. Ao reproduzi-lo impudicamente e com intenso vigor, aceita-o. O gestalt desta afirmação não deixa dúvidas. «Eh pá, estão nos ghettos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los, temos…, então se é para morrer, mais vale morrer de forma mais humana. E porque não com gás (?)».

O autor da afirmação faz um pronunciamento performativo integrando a ação na sua própria retórica. O autor passa a ser a sua palavra. Segundo ele, cuidadosamente pesquisada, meticulosamente escolhida e estruturada para descrever com exatidão o que ele pensa e, acima de tudo, diz ele, a verdade dos factos. A sua verdade. Quando se afirma isto, desculpa-se o indesculpável. Aceita-se o inaceitável. Assim como quando se confabula uma narrativa em que se mistura o Shoah com piscinas, escolas de crianças e truques de magia, embarca-se no negacionismo abjeto que vai inevitavelmente desembocar num não-foi-assim-tão-mau. Porque foi. De facto, foi muito mau mesmo. Por muito que o imaginário narcísico possa sugerir que se está a cumprir um dever para com a verdade, não se está.

Acima de tudo porque não é verdade.

O Auschwitz da piscina onde Kapos podiam nadar entre fornadas de corpos é falso. E as orquestras de mortos vivos tocando valsas de Strauss ou aberturas de Wagner. E as escolas. Tudo isso é falso porque a verdade de Auschwitz-Birkenau conta-se, só, em milhões de mortos. Nada mais. A verdade de Auschwitz-Birkenau e tantos outros campos está nos novelos de cabelos humanos aproveitados para fazer colchões e nos óculos de olhos que já não vêm, nos sapatos descalçados para ir para os chuveiros falsos das câmaras de gás, nos vagões de gado que Eichmann fez rolar com a regularidade precisa de um metrónomo fatal. Quando se vê isso tem-se a dimensão do indescritível.

O horror. O horror. É a única coisa que se pode sentir a alma sussurrar, mas que os desalmados não ouvem porque têm o coração nas trevas da indiferença. E nesse limbo de brutalidade vêm mágicos onde não pode haver magia. E tentam justificar com a normalidade do mal banalizado a ausência de crítica que tem que vir, sempre, para quem se atreve a pensar que o trabalho liberta. E vendem livros no Natal. E despedem-se, de vez, da espécie humana. Porque não vale tudo. 20.