«A morte não melhora ninguém…».
(Mário Quintana, 1906-1994)
Segundo o que se pode inferir, está para breve a aprovação final do diploma sobre a eutanásia. Dizem-nos até que está por dias, tal o afinco que os proponentes, atacados por um qualquer vírus da pressa, têm posto nos seus projectos de lei ‘eutanasiastas’, e dos quais resultará o compósito jurídico de negociações retalhistas. Tudo feito com a vontade, a eficácia e a determinação, que não existe para tantos outros projectos importantes que jazem no parlamento português.
Aqui chegados, dispenso-me de voltar à análise substantiva de tal legislação, que, em diversas ocasiões, já tive a oportunidade de fazer. Há, porém, momentos e circunstâncias em que a forma (e não apenas o conteúdo) assume uma gravidade que releva do modo como os proponentes e dinamizadores de uma lei a aprovam, como se o (seu) mundo acabasse amanhã.
É de um total despudor concluir este projecto num tempo de pandemia, de dor e de sofrimento. É uma vergonha acelerar o processo quando, face ao vírus, morrem tantas pessoas velhas e indefesas em lares ou nas suas casas. É uma afronta que o Estado disponibilize o ‘sacro-SNS’ para gastar dinheiro, competências e recursos de modo a ‘agilizar’ – como gostam de eufemisticamente dizer – tais leis fracturantes. É de um desatino irresponsável não se ter sequer ponderado a sua oportunidade neste emaranhado de uma complexa crise sanitária, humana, social e económica, e no meio de tantas dificuldades e tantas incertezas. É uma obsessão de quem quer juntar morte à morte, de quem, por via legal, amplifica uma insidiosa cultura da morte. É uma provocação numa época em que – mesmo para quem não é cristão – se exprimem dimensões nobres e inalienáveis de vida, de família e de esperança. É uma desfaçatez política e uma violação da ética pública legiferar sobre matéria tão grave, sem ter sido sufragada através dos programas de partidos nas eleições dos seus representantes. É de uma arrogância antidemocrática, de quem só fala da vontade popular quando lhe é conveniente, rejeitar, com um grau de ligeireza intolerável, o pedido de referendo feito por quase cem mil pessoas. É insolente o desrespeito pelos seus signatários, tendo sido marcado o ‘debate’ (sim, com aspas) sobre o referendo no meio da discussão orçamental. É de um desplante auto-suficiente de ‘especialistas de aviário’ – como são a maior parte dos deputados proponentes – ignorar ou secundarizar instituições como o Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida ou as diferentes Ordens profissionais relacionadas com os cuidados de saúde. É uma falsidade prenhe de eufemismos e de ‘cautelas angelicais’ para mais tarde – qual Pôncio Pilatos – se eximirem de responsabilidades sobre a rampa deslizante, de que esta primeira lei será a via verde. É a vitória da superficialidade, da vulgaridade, da trivialização, da banalização da ideia de morte tratada por representantes do povo no estrito teatro ideológico. É um ignóbil convite para a fragmentação ontológica da nossa condição humana de corpo, coração, mente, alma, relação, espírito, percepção, vontade, sensibilidade, consciência, responsabilidade. É a porta de entrada para uma deterioração da relação de confiança médico-doente, sem que isso sobressalte os deputados. É uma afronta a tantos e tantos profissionais de saúde, que tudo fazem para salvar vidas num contexto tão difícil. É mais um passo contra o bem supremo da vida, como bem indisponível, por via do direito positivo contrário ao direito natural. É um contributo iníquo de utilitarismo puro e duro e da ética da conveniência, baseados numa insidiosa métrica do valor da vida, pela qual ser velho ou doente é um problema e nascer é uma inconveniência. É uma arrogância de quem se acha no direito de definir por nós todos o que, sendo vida, pode deixar de ter valor de vida, qual algoritmo infalível. É uma hipocrisia de quem proclama da boca para fora a dignidade da pessoa, a defesa dos mais vulneráveis e a compaixão social e depois decide numa matéria tão sensível através do expediente de uma urgência tão falsa, quanto perigosa. É a constatação dramática de que a velocidade e o excesso jurídicos podem derrotar o imperativo categórico da ética republicana. É a perversão das prioridades, designadamente no que se refere ao investimento nos cuidados paliativos. E pode vir a ser uma provocação a possibilidade de obrigar o actual Presidente da República e candidato a, em período eleitoral, decidir o que fazer sobre tal espúria lei da República.
Perante tudo isto, o silêncio é de uma violência inaudita. Tudo medrando num ambiente que junta ao medo, à angústia, à amargura, ao luto dos portugueses, o alheamento, senão mesmo a indiferença de instituições e pessoas que, consciente ou inconscientemente, acham que isto é com os outros, isto não afecta os seus interesses, isto é para quem venha a seguir, isto não fere o quadrilátero comportamental do individualismo, comodismo, subjectivismo e consumismo, em que tanta gente se apraz.
É preciso ouvir a urgência de viver, não um viver de (falsas) urgências, não a pressa de morrer.
Atrasados em tantos aspectos da nossa vida colectiva, vivendo agora um tempo tão insolitamente grave, vamos voltar a ser campeões nesta insondável cultura da morte, apresentada eufemisticamente como avanço social. É a nossa triste dianteira!
(por opção pessoal, o texto não segue o chamado acordo ortográfico)